09 DE JANEIRO DE 2018
DAVID COIMBRA
O Capitão Rodrigo das neves
Elá estava eu, um gaúcho em meio ao frio de 14 abaixo de zero, em busca do mate que, tragicamente, faltara em minha morada. Passara alguns minutos reconfortantes homiziado em um café, mas estava decidido a enfrentar a pé os 15 minutos que me separavam do mercadinho brasileiro que fica em Allston. Então, saí.
E me fui. E me fui e me fui e me fui. Por algum motivo, sentia mais frio agora, depois do aconchego do cappuccino com canela. Seria por ter visto no celular que a sensação térmica era de 25 negativos? Não pensaria nisso. "Sou gaúcho!", disse baixinho. E segui em frente.
Havia, no meio-fio, muretas de metro e pouco de neve. O leito da rua é limpo pela prefeitura, que usa caminhões equipados com pás de escavadeira para empurrar a neve para o lado e dispositivos que espalham sal pelo chão. As calçadas são de responsabilidade dos moradores. Você tem de limpar 60 centímetros a partir da sua porta. Se não fizer isso, leva multa. E, se alguém cair e se machucar, leva processo.
Quase escorreguei na entrada de Allston. Olhei para a loja que devia cuidar da calçada. Era um lugar que vendia bichos. Havia uma cobra na vitrine. Muitos americanos têm cobras como animais de estimação. Vá entender.
Continuei. Minhas mãos doíam de novo, e ainda havia mais 10 minutos de caminhada. Será que teria de entrar em outro café? Acho que é por isso que tem tanto café por aqui.
Não queria fazer mais uma parada. Seria desonroso. Tentei apressar o passo, mas era difícil, por causa do perigo de resvalar e da neve. A neve é igual à areia, só que gelada. Caminhar na areia é sempre difícil. Bem, pelo menos estava fortalecendo as pernas.
Minhas mãos latejavam e meus olhos lacrimejavam e meu nariz fungava. Respirar um ar gelado de 14 abaixo de zero não deve fazer bem a um homem.
Mas me fui. E me fui e me fui e me fui.
Ao chegar ao mercadinho brasileiro, congratulei-me. Encarar aquele frio era uma façanha de modelo a toda terra.
Estar entre todos aqueles produtos brasileiros fez com que me sentisse aquecido. Olhei para um pacote de bolachas Maria e me emocionei. "Isso é o Brasil", murmurei, e coloquei o pacote no cesto, planejando fazer como na infância: molhar a bolacha no café com leite durante o filme da Sessão da Tarde.
Depois, parei diante do aipim. Nem Pelé é mais brasileiro do que aipim. Lembrei da carne de panela com aipim que o Wianey Carlet fazia e coloquei um sacolão de dois quilos no cesto a fim de homenagear meu amigo. O Wianey usava costela minga, mas ali havia uma picanha da Austrália que podia preparar no forno, coberta com sal grosso. É estranho, mas fica muito bom. Então, acrescentei um quilo de picanha e mais dois sacos de sal.
E é claro que tinha de levar o café brasileiro, porque o americano é horrível. Peguei três pacotes de café tradicional. E sabe o que tinha ao lado do café? Cocada! Será que o Bernardo alguma vez comeu cocada na vida? Peguei meia dúzia. Ah, e não podia esquecer do Nescau. O Bernardo prefere Nescau a qualquer achocolatado americano. Nescau tem gosto de festa.
Outra coisa que só existe no Brasil e naquele mercadinho: requeijão. Nunca fui muito de requeijão, mas agora passei a gostar, devido à distância dos requeijões. Colhi dois vidros e botei na cesta. Estava ficando pesada. Para arrematar, apanhei dois litros de guaraná. Corri ao caixa, paguei, falei sobre o tempo com o dono do mercadinho e, então, confesso: chamei um Uber.
O motorista era um russo que me disse que a temperatura por lá não é diferente da de Boston. Credo. Cheguei em casa e mostrei, vitorioso, as seis sacolas para a Marcinha e o Bernardo. Eles me aplaudiram. Senti-me um herói. O Capitão Rodrigo das neves. A Marcinha foi tirando os produtos da sacola, um a um, e, no fim, ergueu a cabeça, me olhou e, sorrindo, fez a pergunta terrível:
- Cadê o mate?
DAVID COIMBRA