sábado, 7 de abril de 2018



07 DE ABRIL DE 2018
CLÁUDIA LAITANO

porto alegre dá as horas


T odos os dias, a caminho do trabalho, cruzo por um dos muitos relógios parados de Porto Alegre. Todos os dias, diante dos escombros melancólicos de um ginásio semidestruído, volto o olhar para o esqueleto desse relógio na expectativa de um milagre: que uma entidade mágica (ou burocrática, ambas igualmente invisíveis e de humores imponderáveis) tenha ordenado durante a madrugada que todos os relógios de Porto Alegre deveriam voltar a marchar, lenta e diligentemente, rumo aos minutos seguintes agora e para sempre.

Todos os dias, na Silva Só com a Ipiranga, olhando aquela sucata de utilidade pública fincada em seu canteirinho tristonho, lembro de uma das muitas superstições da minha mãe, uma mulher que não largaria a bolsa no chão nem em caso de assalto: espelho quebrado e relógio parado, azar dobrado. Não acredito em milagres, superstição em mim não cola, mas a inútil paisagem desses relógios parados é uma porteira aberta, se não para o azar, para o abatimento.

Vizinhos de rua, o ginásio-zumbi e o relógio-esqueleto formam uma espécie de cartão-postal do colapso estético - uma esquina fantasma assombrando o olhar de quem não consegue se acostumar com a aridez do cenário de todos os dias. Espalhados por toda a cidade, esses relógios sem beleza nem função marcam uma única hora: a do espanto. No que diz respeito à política oficial, essa que se arrasta por corredores pouco iluminados e cheios de obstáculos, são uma confissão em néon de fracasso - não o mais grave, mas o mais apropriado para efeitos de metáfora autoexplicativa de atraso e imobilidade.

Para nossa sorte, para cada máquina parada há milhares de humanos que nunca param. O pulso da cidade ainda pulsa, e isso graças à iniciativa de quem não fica esperando que alguém dê corda nas engrenagens que não funcionam. Coletivos de artistas, pequenas livrarias e editoras arriscando novos empreendimentos, festas de rua revitalizando locais públicos, músicos jovens e veteranos inventando novos projetos, grupos de teatro e dança criando sem parar, mesmo na precariedade, eventos e espaços culturais se reinventando.

Dois exemplos da Porto Alegre que não dorme no ponto: 1) Neste final de semana, a Virada Sustentável realiza mais de 200 atividades para debater o presente e o futuro das cidades. A programação inclui mais de 40 atrações de música, cinema, artes visuais, literatura, circo, teatro e dança. 2) Este é também o primeiro fim de semana de visitação da Bienal do Mercosul, que se estende até 3 de junho, com obras de cerca de 70 artistas em exibição no entorno da Praça da Alfândega.

Uma das obras que poderão ser visitadas na Bienal, aliás, é a instalação Standard Time, criada pelo artista alemão Mark Formanek. Para fazer esse "relógio humano" funcionar, uma equipe troca dígitos de quatro metros de altura a cada minuto, marcando a passagem do tempo com visível esforço físico. Ou seja: de quinta a domingo, até o final da Bienal do Mercosul, pelo menos um relógio público da cidade estará operando como deveria. Sirvam as façanhas da arte de modelo a nossa terra.

CLÁUDIA LAITANO