05 DE ABRIL DE 2018
L.F. VERISSIMO
Capacetada
A cidade de Nova Hartz fica no interior do Rio Grande do Sul, não muito longe de Porto Alegre. Todos os anos, na Páscoa, a cidade faz uma encenação da Paixão de Cristo que termina com sua crucificação no monte Gólgota. A parte final é a mais impressionante do espetáculo, com a música, a iluminação e os efeitos de cena contribuindo para a dramaticidade do seu desenlace. Que inclui o detalhe mais cruel do drama: o do centurião romano que espeta o lado do agonizante Jesus com sua lança.
Neste ano, a cena final teve uma participação inesperada. Um espectador não aguentou tanta maldade, pulou no palco e atacou o centurião com um capacete de motoqueiro, interrompendo o martírio de Cristo e o espetáculo e espalhando confusão e perplexidade no monte Gólgota que não estavam no script. Até o momento em que escrevo, a invasão do palco já tinha saído na imprensa de todo o mundo, mas aqui não se sabia muita coisa sobre o homem que atacou o centurião, se estava bêbado ou apenas indignado, ou as duas coisas.
Pensando bem, sabia-se tão pouco sobre o invasor quanto sobre o ator que fazia o centurião em Nova Hartz e menos ainda sobre o próprio centurião romano da Bíblia, um daqueles ajudantes que têm seus cinco minutos na História e desaparecem para sempre. Os evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João não se contradizem muito no relato do martírio e da crucificação de Jesus, mas só São João menciona o centurião com sua lança covarde, que ficou como protótipo de sadismo gratuito, além do dever militar. Se há algum personagem histórico, fictício ou não, que merece uma capacetada retroativa, é esse centurião. Né não?
Resta comentar a força do teatro, que consegue impelir um homem para cima de um palco e enfrentar uma guarnição de soldados romanos armados com lanças para vingar Jesus Cristo. E há no ato do nosso herói uma reprimenda implícita. Onde estávamos que não pulamos no palco para enfrentar todas as injustiças que nos revoltam, desde Gólgota?
L.F. VERISSIMO