14 DE ABRIL DE 2018
DAVID COIMBRA
A mulher do sapato vermelho
Estava à beira da calçada, esperando o sinal abrir para atravessar a avenida, quando aquela mulher disse: - Tenho um sapato igual ao seu. Olhei para ela, surpreso.
- Sorry?
- É igual ao seu - ela apontou para os meus pés. - Só que vermelho.
Sorri. Ela tinha entre 50 e 60 anos. Ou mais. Ou menos. Difícil especular a idade das mulheres. Fiz o cálculo avaliando seus cabelos azulados e algumas rugas que lhe abriam finos canais no rosto.
- Vermelho? - comentei.
- Vermelho - ela confirmou. E ficou discorrendo sobre as qualidades do sapato, como era confortável, como era agradável caminhar dentro dele, eu tinha muita sorte de andar com um sapato tão bom, parabéns para mim. Então, o sinal esverdeou, nos despedimos e segui caminho, desejando-lhe um ótimo dia.
O meu dia ela já tinha tornado ótimo. Eu agora avançava sorrindo pela calçada, pensando em como viver é fácil quando a vida é suave.
Já contei que os americanos têm esse hábito de fazer elogios a estranhos. Invariavelmente, trata-se de um elogio impessoal, embora seja para uma pessoa (o sapato, a camisa, a refeição que se está comendo). Devia estar acostumado com isso, mas é algo que sempre me surpreende e sempre me faz bem.
Nessa manhã do sapato vermelho, a de sexta-feira passada, havia deixado o Bernardo na escola e voltava para casa meio apressado, porque tinha de participar do Timeline, da Rádio Gaúcha. Depois do rápido diálogo com a mulher do semáforo, diminuí um pouco o ritmo da passada e prestei atenção ao dia. Pela primeira vez, em quase seis meses, fazia 12°C ao amanhecer. O céu era de um azul liso como as pernas da Pugliesi, sem uma única nuvem, o sol aquecia o ar fino e a rua estava cheia de gente que sorria. Sim, as pessoas sorriam, e sei qual era a razão: a primavera enfim havia chegado.
Fiz um caminho mais longo para estender o passeio. Olhei para as copas das árvores e percebi os brotos das folhas que já apareciam nos galhos. Entrei em casa assobiando. Montei o equipamento para fazer o programa. Conectei-me com Porto Alegre e, assim que a Kelly me chamou, o Augusto Silveira, arquiduque dos operadores de áudio, botou para rodar um Paul McCartney dos tempos do Wings: Another Day. É que, naquele dia, havia começado a minha coluna contando sobre o inesquecível show do Paul McCartney realizado em Porto Alegre em 2010. Foi uma gentileza do Augusto, gentil que ele é.
E assim, de improviso, empolgados pelas lindas músicas de "sir" Paul, eu, o Potter e a Kelly deitamos a falar de Beatles, de belas canções e de doces noites de meia-estação, e, enquanto falávamos e o Augusto fazia a ilustração sonora, os ouvintes mandavam mensagens para a rádio. Uns haviam parado o carro para ouvir com mais critério, outros pediam que continuássemos o programa daquele jeito e havia os que simplesmente queriam dizer que aquela leveza os deixara mais leves. Eles estavam felizes.
O elogio inócuo de uma desconhecida. Um mimo em forma de atenção de um colega de trabalho. Uma conversa amena. Música. A vida é maior do que o amargor da política ou das discussões nas redes sociais. Muito, muito maior.
DAVID COIMBRA