sexta-feira, 6 de abril de 2018


Sonhos imortais 


Governo algum, exército algum, polícia alguma, ditadores de esquerda, centro ou direita, nada, ninguém consegue eliminar grandes sonhos, destes que passam de gerações para gerações e que resistem mesmo que prendam, matem ou silenciem os sonhadores. As artes e a literatura têm sido campos férteis, livres e ilimitados para sonhar.

Jorge Luis Borges, o genial escritor argentino, pouco antes de morrer, disse a Lígia Fagundes Telles, como última mensagem-legado, que ela nunca esquecesse dos sonhos, que eles eram o mais importante. Fico pensando nisso e em outras coisas depois de assistir o belo filme A livraria (The Bookshop), de Isabel Coixet, com Emily Mortimer e Bill Nighy, que está em cartaz em Porto Alegre. A narrativa se passa no final da década de 1950, quando uma viúva, sozinha, adquire uma casa velha e abandonada numa pequena e pacata cidade litorânea da Inglaterra, onde ninguém lê, e resolve se mudar para lá e abrir uma livraria.

A conservadora comunidade local se opõe à modesta empreitada da viúva, que, aliás, tinha tudo para dar errado. Como a pequena livraria não quebrou e até passou a vender o romance Lolita de Nabokov, os inimigos da senhora que amava os livros se movimentaram e aí a coisa começou a ficar complicada. Não conto o resto para não estragar o prazer dos leitores com o final do filme, que recomendo. Governos tentaram controlar a arte e a cultura, como aconteceu na União Soviética e na Alemanha nazista, e até aqui no Brasil em alguns momentos. A arte e a liberdade triunfaram.

Os ditadores e os censores foram para as calendas gregas. Os sonhos voaram mais alto. Muitos artistas e apreciadores das artes e das manifestações culturais gostam de "arte pela arte" e acham que o que interessa é o objeto artístico e o fazer artístico em si, não importando contexto político, histórico, cultural ou coisa assim.

Cada um com sua opinião, mas, para mim, essa posição, tipo "torre de marfim" é ultrapassada e não tem a ver com nossos tempos conectadíssimos, onde todo mundo tem a ver com todo mundo e tudo tem a ver com tudo, nesse mundo plano. Voltando um pouco ao filme que falei antes, é bonito ver uma pessoa sonhando, mesmo um sonho meio impossível, tipo uma livraria num fim de mundo onde ninguém lê. E é bonito ver alguém lutar pelo seu sonho, mesmo diante de inimigos poderosos que querem ter o prazer de achar que vão liquidar com seu sonho. Ledo engano deles. Sonhos são imortais.

Como livros, leituras, quadros, esculturas, peças teatrais, filmes, música e outras tantas expressões. São imortais e infinitos. Não podem e não devem ser aprisionados. Há que diga até que aquilo que um homem sonha, outro pode realizar. A história da humanidade pode ser vista como uma sucessão de sonhos. Alguns realizados; outros0, não. Mas todos seguem existindo. O ser humano deve sentir-se muito bem sabendo que tem territórios infinitos e livres para sonhar e criar, mesmo quando os inimigos e as situações externas causem embaraços. 

a propósito...

Sou brasileiro, sonhador, profissão esperança. Peço a Deus que não deixe que me tirem as esperanças no Brasil e nos brasileiros. Sei que o parto do Brasil é demorado, como disse o João Cabral de Melo Neto, mas tomara que possa continuar sonhando com a democracia verdadeira e com um país decente para mim, filhos e, tomara, futuros netos. Eu tive um sonho que nós tínhamos conseguido nos unir em torno de alguns interesses nacionais do bem.

Eu tive um sonho que tínhamos conseguido resolver as coisas sem violência ou radicalismo. Sonhei até que veio uma livreira inglesa viúva para cá, para uma cidadezinha do interior, vender livros. Livros impressos. Ela não se importou quando disseram que liam pouco por aqui. "Um dia, a coisa muda", disse ela, olhando para as estrelas. (Jaime Cimenti) - Jornal do Comércio

http://jcrs.uol.com.br/_conteudo/2018/04/colunas/livros/620197-quem-foi-maria-madalena.html)