segunda-feira, 23 de abril de 2018


23 DE ABRIL DE 2018
L.F. VERISSIMO

Boa briga


Certas coisas são mais importantes pelo que evocam do que pelo que são. Têm um significado simbólico que às vezes suplanta a sua realidade. Foi o caso da pesquisa neurológica entre detentos de menor idade para estudar as causas da criminalidade e do comportamento agressivo, realizada não faz muito por uma universidade do Sul.

A reação ao projeto foi forte. Estudos desse tipo, segundo seus críticos, buscam argumentos para os que propõem razões biológicas e genéticas, ao contrário de culturais e sociais, para a criminalidade, e eximem a sociedade da sua culpa. Os defensores da pesquisa alegam que avanços havidos na investigação neurológica, da base puramente biológica do comportamento anômalo, tornaram obsoleta a velha questão natureza x cultura que dividia - grosseiramente entre direita e esquerda - os psicólogos e os analistas sociais. 

E que uma maior compreensão do funcionamento de um cérebro criminoso não exclui a influência do meio na sua existência. O outro lado defende que pesquisas assim já partem do pressuposto de que o social não importa e só querem camuflar seu reacionarismo - no fundo, quase uma volta a teorias criminalísticas do século 19 - com pseudorrigor científico. Reacionário é quem não aceita o progresso da ciência por preconceito político, dizem os outros. Enfim, uma boa briga.

Mas o que informa, e talvez distorça, o debate mais do que tudo é que nada que se faça ou discuta nessa área deixa de evocar as experiências nazistas com a eugenia. Pode ser injusto, mas o fato de a pesquisa proposta ser com detentos e seu fim não declarado mas implícito ser a "cura" individual do desvio de conduta pela intervenção biológica ou química reforça a evocação incômoda.

Ninguém gosta de lembrar que a monstruosa experimentação dos nazistas em cobaias humanas foi predecessora direta do que viria a ser o mais revolucionário ramo da especulação científica do pós-guerra, o da manipulação genética, que abre a possibilidade de a espécie humana premeditar a prole ou programar sua progenitura - e, supostamente, seu caráter e sua índole, além de sua saúde. Mas, mais de 60 anos depois do fim da II Guerra Mundial, todas as experiências cujo objetivo seja procurar no corpo e nos genes as causas da imperfeição humana e na transformação da sua natureza a solução ainda têm que conviver com a memória dos horrores nazistas. Merecendo ou não, a evocação é inescapável.

Que lado do debate tem razão? Felizmente eu não preciso decidir. A política é sempre má palpiteira em assuntos de ciência, mas a ciência arregimentada para provar preceitos políticos é pior. E acho bom que perdure por muitos mais anos na memória do mundo o que aconteceu na Alemanha nazista, quando uma presunção de neutralidade moral levou a ciência a romper todos os limites da humanidade.

L.F. VERISSIMO