08
de junho de 2014 | N° 17822
MARTHA
MEDEIROS
A casaca
Ele,
colorado fanático, era casado com uma também colorada, e tiveram dois filhos,
dois meninos que obviamente torciam para o Internacional, herdando a paixão da
família. Muitos pais têm uma vontade, às vezes secreta, de que os filhos sigam
sua profissão, pratiquem a mesma religião, desenvolvam preferências idênticas,
mas quando se trata do time de futebol, a vontade deixa de ser secreta para ser
escancarada: os filhotes são induzidos abertamente a honrar a camiseta do time.
Não
raro, os pais colocam a escolha futebolística do bebê já declarada na porta da
maternidade. Nasceu Matias, nasceu Luciana, e ao lado do nome o distintivo
doFlamengo, do Vasco, do Atlético, do Corinthians ou de qualquer que seja o
clube daquela criança que não ousará transgredir uma tradição sagrada.
Mas
eu estava falando do Internacional, e de um colorado casado com uma colorada
com quem teve dois coloradinhos. Pois ele se divorciou da colorada. E os
meninos, de nove e sete anos, ficaram morando com ela, como quase sempre
acontece. A separação não chegou a ser litigiosa, mas tampouco foi um passeio
num jardim florido: as pendengas de sempre sobre valores de pensão, partilha de
bens, sem falar no ciúme corrosivo em relação à nova namorada com quem papai já
desfila - como são rápidos esses homens.
Pois
ela, a mãe, ainda sem um namorado para distraí-la, e considerando-se levemente
injustiçada com a situação toda, resolveu irritar o ex-marido (“para não perder
a prática”, diz ele). Virou gremista. E, claro, está catequizando os dois
moleques para que virem também.
O
homem está fora de si. A ex-mulher está usando todos os recursos disponíveis: hinos,
uniformes, influência de amiguinhos, idas ao estádio, histórias mal contadas,
chantagem emocional e vasto repertório de doutrinação. Os meninos começam a
vacilar. O plano está prestes a dar certo.
Eu
disse a ele que duvido que os filhos mudem de lado: um pai torcedor costuma ser
invencível como exemplo. Mas ele teme pela chegada de um padrasto que
desequilibre essa balança de vez.
Que
drama.
Virar
a casaca é um direito, mas não deixa de ser uma traição. Quando escuto um
brasileiro dizendo que vai torcer pela Argentina ou para qualquer outra Seleção
que não a nossa, não consigo evitar o muxoxo. Sei que o futebol pode ser
alienante, pode reforçar ou enfraquecer a imagem de governos, portanto é legítimo
o protesto político em forma de torcida contra, mas sempre é incômodo ver a
paixão perder para o racionalismo. Pô, de vez em quando é preciso parar de
pensar e se entregar para a emoção - para não perder a prática, que seja.
Vale
para adultos e mais ainda para crianças, cuja inocência não merece ficar órfã.