sábado, 14 de junho de 2014


15 de junho de 2014 | N° 17829
ANTONIO PRATA

Batman & Chaplin

Dentre os inúmeros objetos que pertencem ao reino da comédia – como o funil, a tuba, a gravata borboleta e o saca-rolhas –, tenho um apreço especial pelo guarda-chuva, esse fiel e destrambelhado companheiro.

Eu disse fiel, e algum leitor, lembrando-se de todos os guarda-chuvas deixados no chão de táxis, na porta de restaurantes, na casa de amigos, pode discordar. Não os acuse injustamente, meu caro: a culpa por essas perdas não foi deles, mas de sua distração.

Muito diferente do que acontece com Bics e isqueiros, por exemplo, esses sim seres nada confiáveis, vagabundos, beatniks que mal entram num bolso e já querem pular pro próximo, ansiosos por tocar novos dedos, escrever outros textos, provar diferentes cigarros. Uma Bic ou um isqueiro perdidos estão livres: um guarda-chuva abandonado é órfão. (Talvez por isso, aliás, já venha ao mundo de luto.)

Se fosse apenas fiel e triste, porém, como um velho mordomo num romance do século 19, eu não teria nenhum apreço pelo guarda-chuva. O que me encanta nessa improvável traquitana é que por trás de sua aparente seriedade, por baixo de seu solene black-tie, encontra-se, como eu dizia lá no começo, um humorista.

Você está andando pela Paulista num dia de chuva. Observa, deslizando pela calçada, a cordilheira de abóbadas negras, competentemente armadas. Então, aproveitando uma rajada de vento, um desses comediantes joga o fraque pra cima, pelo simples prazer de exibir suas anáguas de metal, como uma dançarina de cancã. Um chacoalhão de seu dono e o pândego volta ao normal, fingindo que nada aconteceu, com a ironia britânica que lhe é peculiar.

Lorde inglês, dançarina de cancã, percebe? Poucos objetos são mais contraditórios. Visto por cima, vestido balonê; por baixo, revolução industrial. Armado, miniparaquedas; fechado, banana passa.

Sempre que, em qualquer canto do globo, um guarda-chuva é aberto, põe-se em movimento o eterno cara ou coroa entre a Ordem e o Caos. Por centenas de vezes, o anel desliza perfeitamente pela haste, as varetas se erguem, a lona estica: Apolo venceu. Um dia, contudo, um dia em que este caprichoso filho de morcego com bicicleta acordou com a pá virada, cada ossinho de metal resolve mover-se prum lado; onde deveria desabrochar o hirto semicírculo surgem mil cotovelos, em vez da perfeição esférica temos um Bicho da Lygia Clark – e é assim, com uma gargalhada de Dionísio, que morre um guarda-chuva.

Morre, mas só individualmente. Coletivamente, apesar de seu óbvio anacronismo (é primo do 14 Bis, irmão da máquina de escrever, namorou uma suffragette), resiste. E não ache que são poucas as tentativas de superá-lo. Segundo uma matéria da revista New Yorker, o órgão responsável pelas patentes nos EUA tem mais de três mil registros relativos aos guarda-chuvas, e a cada mês chegam tantos outros que há quatro funcionários só para cuidar dessa área.

No pasarán!, digo eu. “Eu, passarinho”, dirá o guarda-chuva, e, esquecido no chão, aberto, aproveita a primeira lufada para sair voando – outra de suas brincadeiras favoritas –, desengonçado como uma galinha, como um gordo dançando balé, como um gorila brincando nos trapézios, irretocável em sua harmoniosa desconjunção.


*Durante o período da Copa do Mundo, esta coluna republicará textos antigos do autor