15 de junho de 2014 | N°
17829
ANTONIO PRATA
Batman & Chaplin
Dentre os inúmeros objetos que
pertencem ao reino da comédia – como o funil, a tuba, a gravata borboleta e o
saca-rolhas –, tenho um apreço especial pelo guarda-chuva, esse fiel e
destrambelhado companheiro.
Eu disse fiel, e algum leitor,
lembrando-se de todos os guarda-chuvas deixados no chão de táxis, na porta de
restaurantes, na casa de amigos, pode discordar. Não os acuse injustamente, meu
caro: a culpa por essas perdas não foi deles, mas de sua distração.
Muito diferente do que acontece
com Bics e isqueiros, por exemplo, esses sim seres nada confiáveis, vagabundos,
beatniks que mal entram num bolso e já querem pular pro próximo, ansiosos por
tocar novos dedos, escrever outros textos, provar diferentes cigarros. Uma Bic
ou um isqueiro perdidos estão livres: um guarda-chuva abandonado é órfão.
(Talvez por isso, aliás, já venha ao mundo de luto.)
Se fosse apenas fiel e triste,
porém, como um velho mordomo num romance do século 19, eu não teria nenhum
apreço pelo guarda-chuva. O que me encanta nessa improvável traquitana é que
por trás de sua aparente seriedade, por baixo de seu solene black-tie,
encontra-se, como eu dizia lá no começo, um humorista.
Você está andando pela Paulista
num dia de chuva. Observa, deslizando pela calçada, a cordilheira de abóbadas
negras, competentemente armadas. Então, aproveitando uma rajada de vento, um
desses comediantes joga o fraque pra cima, pelo simples prazer de exibir suas
anáguas de metal, como uma dançarina de cancã. Um chacoalhão de seu dono e o
pândego volta ao normal, fingindo que nada aconteceu, com a ironia britânica
que lhe é peculiar.
Lorde inglês, dançarina de cancã,
percebe? Poucos objetos são mais contraditórios. Visto por cima, vestido
balonê; por baixo, revolução industrial. Armado, miniparaquedas; fechado,
banana passa.
Sempre que, em qualquer canto do
globo, um guarda-chuva é aberto, põe-se em movimento o eterno cara ou coroa
entre a Ordem e o Caos. Por centenas de vezes, o anel desliza perfeitamente
pela haste, as varetas se erguem, a lona estica: Apolo venceu. Um dia, contudo,
um dia em que este caprichoso filho de morcego com bicicleta acordou com a pá
virada, cada ossinho de metal resolve mover-se prum lado; onde deveria
desabrochar o hirto semicírculo surgem mil cotovelos, em vez da perfeição
esférica temos um Bicho da Lygia Clark – e é assim, com uma gargalhada de
Dionísio, que morre um guarda-chuva.
Morre, mas só individualmente.
Coletivamente, apesar de seu óbvio anacronismo (é primo do 14 Bis, irmão da
máquina de escrever, namorou uma suffragette), resiste. E não ache que são
poucas as tentativas de superá-lo. Segundo uma matéria da revista New Yorker, o
órgão responsável pelas patentes nos EUA tem mais de três mil registros
relativos aos guarda-chuvas, e a cada mês chegam tantos outros que há quatro
funcionários só para cuidar dessa área.
No pasarán!, digo eu. “Eu, passarinho”,
dirá o guarda-chuva, e, esquecido no chão, aberto, aproveita a primeira lufada
para sair voando – outra de suas brincadeiras favoritas –, desengonçado como
uma galinha, como um gordo dançando balé, como um gorila brincando nos
trapézios, irretocável em sua harmoniosa desconjunção.
*Durante o período da Copa do
Mundo, esta coluna republicará textos antigos do autor