17 de julho de 2015 | N° 18229
DAVID COIMBRA
O piano
Tem alguém que toca piano aqui perto de casa. Essa pessoa
mora num apartamento térreo, com uma janela que dá para a calçada. As cortinas
ficam fechadas e, atrás delas, esse homem (ou mulher, sei lá) se distrai ao
piano a cada fim de tarde. Não é um exercício, não é um músico estudando,
porque detrás daquelas cortinas não voam pedaços de melodia, o que vem de lá são
composições inteiras, sempre melancólicas, sempre levemente adocicadas, sempre
ao entardecer.
Quem será essa pessoa que toca piano quando os dias vão
embora, aqui perto de casa? Já imaginei que talvez seja um velhinho. Ele nunca
abre as cortinas, nunca deixa o sol entrar na sua casa porque ainda ceva o luto
do amor perdido na juventude. À noitinha, hora da nostalgia, ele pensa nela e
repete chorando as músicas que marcaram seus dias de paixão.
Depois achei que isso era uma idiotice romântica. Poderia
ser bem o contrário. Poderia ser um homem maduro, um solteiro profissional, de
hábitos sólidos e caros. Todos os dias, depois do trabalho como executivo, ele
chega em casa, fuma um cubano, senta-se ao piano e derrama a melodia lânguida
no ouvido de uma beldade que está aninhada como um angorá no sofá, aos suspiros.
Algo como O pecado mora ao lado, o clássico de Billy Wilder em que ninguém senão
Marilyn Monroe ouve Tom Ewell interpretar Rachmaninoff ao piano.
Rachmaninoff. Cada vez que o cito lembro que ele, além de
compositor de obras poderosas, tinha mãos enormes, capazes de alcançar notas
separadas por 30 centímetros
no teclado do piano.
Não sei se alguma vez esse homem misterioso tocou
Rachmaninoff para suas conquistas, mas talvez ele nem seja um homem, talvez
seja uma mulher. Isso! Conheci, muito tempo atrás, uma mulher belíssima que
tinha por hábito tocar piano completamente nua. Por que não haveria uma
semelhante no Hemisfério Norte?
Ah, ela é uma ruiva de pernas longas e olhar esverdeado e,
antes de se acomodar à banqueta, livra-se de todas as roupas, de tudo o que se
interpõe entre ela e sua música e, em seguida, nua em pelo, natural como um bicho,
começa a produzir sua melodia, e se deixa envolver pelo som, e todo o seu corpo
sente a harmonia, e a mulher e a música tornam-se uma coisa só, até o clímax, a
pequena morte do gozo, que vem com a última nota, e ela cai ao chão, exausta,
soluçando, feliz...
Ou pode não ser nada disso. Pode ser um adolescente
espinhento que é obrigado a tocar para os amigos dos pais que lhe pagam a
Faculdade de Música. Quem sabe? Nunca vi ninguém naquele apartamento. Mas, uma
tarde, ao passar por ali, ouvi a música e parei. Era tão bonito. Encostei-me à caixa
coletora dos correios e fiquei ouvindo. Ouvi por um minuto ou dois. E aí a música
cessou. Foi interrompida bruscamente, entre duas notas. Achei estranho. Esperei
um pouco. Olhei para a cortina. Pensei tê-la visto se mexer. Pensei que uma
fresta havia sido aberta e que um olho, um único olho, me espiava da escuridão.
Estremeci.
Decidi ir em frente. Dei dois passos vacilantes e, então, de lá, da
sala escura, brotou um som mais contundente do que ouço todas as tardes. Um
conjunto de notas que não consegui distinguir, mas senti que eram robustas. Seria
algo agressivo, um Beethoven revoltado com a surdez? Seria um Wagner venerado
pelos nazistas? Ou seria, o mais ameaçador de todos, Chopin, com sua Marcha fúnebre?
Não esperei para descobrir. Fui embora rápido, sem olhar para trás. Porque a música,
quando quer, também pode ferir.