27 de julho de 2015 | N° 18239
MUNDO ANOS DE CHUMBO
DE SEQUESTRADOR A CRIADOR DE GALINHAS
EX-POLICIAL FEDERAL ARGENTINO, integrante de uma lista de 63 repressores acusados de crimes contra a humanidade, vivia tranquilamente em um sítio no interior de Viamão até ser capturado no começo deste mês
Em meio a campos e cavalos na zona rural de Viamão, na pele de um modesto criador de galinhas, o ex- oficial principal da Polícia Federal em Buenos Aires Roberto Oscar González, 64 anos, em nada lembrava um repressor que atuou durante a ditadura Argentina (1976 a 1983). De codinomes Federico, Fede e Obdulio, chamado de Gonzalito pelos mais chegados, o ex-policial, capturado pela Polícia Federal (PF) gaúcha, escolhera o Rio Grande do Sul para se esconder da justiça argentina, que busca punir responsáveis por um massacre que fez desaparecer cerca de 30 mil pessoas.
O nome de González consta de uma lista de 63 repressores acusados de crimes contra a humanidade. Por informações que levassem a ele, o governo argentino oferecia R$ 180 mil. A mesma recompensa era estipulada a um colega, o agente federal Pedro Osvaldo Salvia, o Lobo, vitimado por uma doença, no mês passado, aos 63 anos, no Hospital de Viamão. Pesavam contra ambos crimes como sequestros e assassinatos – o mais rumoroso deles, o do escritor e jornalista Rodolfo Walsh (leia ao lado).
Em junho de 2005, a Suprema Corte da Argentina anulou duas leis que anistiavam repressores e o Código Penal Militar, abrindo caminho para novos processos na Justiça comum. A opção de González e Salvia foi fugir para o Brasil. González deixou mulher e filha e se estabeleceu em Porto Alegre, onde tinha familiares. Salvia, solteiro, sem irmãos, mulher ou filhos, foi para o Rio de Janeiro.
Vivendo como clandestino (sem regularizar visto) na Capital, mas se apresentando com o nome e documentos verdadeiros, González abriu com parentes uma empresa de importação e exportação de hortifrutigranjeiros chamada Rumonorte, no bairro Jardim Botânico. A firma teria funcionado apenas por alguns meses.
Em outubro de 2005, a justiça argentina declarou González e Salvia foragidos, e os nomes foram incluídos na lista vermelha da Interpol (Polícia Internacional). Oito anos depois, foi expedido um pedido de extradição ao governo brasileiro, e o Supremo Tribunal Federal emitiu ordem de prisão preventiva para os dois.
RECLUSO, GONZÁLEZ PLANTAVA CHUCHU E TAMBÉM VENDIA OVOS
Agentes do Núcleo de Inteligência da PF gaúcha (representantes da Interpol) souberam que a empresa de González tinha registrado em nome dela um Peugeot 405 vermelho, ano 2005, com placas de Porto Alegre. Apesar de a empresa não operar mais, a Rumonorte seguia pagando o IPVA do carro em dia. A partir de uma multa aplicada ao carro em Viamão, os federais chegaram à propriedade rural em que González vivia no município.
No local, funciona um criadouro de cavalos e uma oficina que fabrica touro sobre rodas, equipamento usado em treinamento de laço. González morava, havia dois anos, em uma antiga casa de alvenaria com três quartos, mobília velha e pátio com piscina abandonada. Vivia sozinho, não recebia visitas e pouco saía. Tratava os vizinhos com gentileza e, com ar de sofrimento, se dizia aposentado. Plantava chuchu, tempero verde, criava galinha, vendia ovos e fazia bicos na oficina do dono do sítio.
Meses atrás, González havia acolhido Salvia. Vindo do Rio de Janeiro com mal de Parkinson, ele não sabia da morte dos pais, os únicos parentes ainda vivos. González dava comida na boca do amigo. Em 17 de junho, Salvia piorou. González o levou ao Hospital de Viamão, mas Salvia chegou lá sem vida. Temendo ser descoberto, González abandonou o colega na hora da morte. Até ontem, o corpo seguia no Departamento Médico Legal à espera de um familiar ou responsável para o sepultamento.
Em 6 de julho, González foi preso. Desarmado, não reagiu. Pegou roupas, um livro espírita, R$ 1,5 mil que tinha em casa e foi levado a uma cela da carceragem da PF em Porto Alegre, à espera da extradição. Demonstrou frieza, sem arrependimentos, e o desejo de ficar preso no Brasil. Conhece as cadeias do seu país e, por ser quem ele é, sabe que não seria bem tratado por lá.