19 de julho de 2015 | N° 18231 L . F. VERISSIMO
As aventuras da família Brasil
Virtuosismo passional
Os textos de Julio Cortázar são para ser lidos como jogos de
armar. Cortázar seria um pioneiro do pós-modernismo, definido como uma
literatura autoconsciente ao extremo, uma literatura com os andaimes à mostra,
em que o leitor é convidado a ser cúmplice dos seus artifícios. Italo Calvino
descreveu o pós-modernismo como “a tendência de usar, ironicamente, imagens
padronizadas da cultura de massa ou da tradição literária numa narrativa que
acentua o seu artificialismo”.
Segundo essa definição, o pós-moderno é a continuação do
moderno como paródia. Ou, no caso de Cortázar e outros, como jogo. Parafraseando
o que Marx disse sobre a História, na literatura o convencional também só se
repete como farsa.
Pode-se, com alguma boa vontade, identificar o começo do pós-moderno
no pré-moderno, na origem da tradição literária de que fala Calvino: o Dom
Quixote de Cervantes já era uma literatura autoconsciente e parodística – no
começo do século 17. A
segunda parte de Dom Quixote acontece num mundo em que já aconteceu a primeira,
e as aventuras malucas de Quixote são conhecidas de todos. Cervantes incorpora
sua fantasia e seu personagem fictício à realidade do dia, confiando na indulgência
do leitor com o truque. E pode dizer, antes de todos os pós-modernistas que virão:
“Primeirão!”.
Outro precursor, este no século 18, foi A Vida e as Opiniões
do Cavalheiro Tristram Shandy, do irlandês Laurence Sterne. Publicado em nove
volumes, é a história, contada na primeira pessoa, de um personagem
rocambolesco, Tristram, que recorre a todas as convenções literárias da época,
fazendo pouco delas, para narrar sua vida.
E, quando as convenções e as palavras não bastam, recorrendo
a grafismos como o desenho no meio do texto de uma linha em espiral para
descrever o movimento de uma bengala no ar. O que deve ter sido um desafio para
os tipógrafos da época. Sterne também foi um pós-moderno antes do moderno.
O americano John Barth, este um pós-moderno de hoje,
escreveu sobre dois pós-modernos contemporâneos que admira, Calvino e Jorge
Luis Borges. E tomou emprestado de Borges uma definição de dois valores que,
combinados, descrevem a arte da dupla, Álgebra e Fogo. Álgebra (a “árdua álgebra”
de Borges) significando a engenhosidade formal na construção de uma obra, o
truque que surpreende ou desafia o leitor, ou pleiteia uma cumplicidade
intelectual. Fogo significando o que comove, o que toca fundo.
Álgebra sem fogo acaba em malabarismo técnico sem alma, fogo
sem álgebra acaba em literatura enjoativa, porque alma demais também enjoa. Para
Barth, Calvino e Borges são os dois grandes escritores do nosso tempo porque,
na sua ficção, atingiram como ninguém mais a fusão de álgebra e fogo. Barth
descreve o que eles fazem – ou fizeram, pois os dois já se foram – como “virtuosismo
passional”. Perfeito.