sábado, 18 de julho de 2015



19 de julho de 2015 | N° 18231 L. F. VERISSIMO
As aventuras da família Brasil

Virtuosismo passional

Os textos de Julio Cortázar são para ser lidos como jogos de armar. Cortázar seria um pioneiro do pós-modernismo, definido como uma literatura autoconsciente ao extremo, uma literatura com os andaimes à mostra, em que o leitor é convidado a ser cúmplice dos seus artifícios. Italo Calvino descreveu o pós-modernismo como “a tendência de usar, ironicamente, imagens padronizadas da cultura de massa ou da tradição literária numa narrativa que acentua o seu artificialismo”.

Segundo essa definição, o pós-moderno é a continuação do moderno como paródia. Ou, no caso de Cortázar e outros, como jogo. Parafraseando o que Marx disse sobre a História, na literatura o convencional também só se repete como farsa.

Pode-se, com alguma boa vontade, identificar o começo do pós-moderno no pré-moderno, na origem da tradição literária de que fala Calvino: o Dom Quixote de Cervantes já era uma literatura autoconsciente e parodística – no começo do século 17. A segunda parte de Dom Quixote acontece num mundo em que já aconteceu a primeira, e as aventuras malucas de Quixote são conhecidas de todos. Cervantes incorpora sua fantasia e seu personagem fictício à realidade do dia, confiando na indulgência do leitor com o truque. E pode dizer, antes de todos os pós-modernistas que virão: “Primeirão!”.

Outro precursor, este no século 18, foi A Vida e as Opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy, do irlandês Laurence Sterne. Publicado em nove volumes, é a história, contada na primeira pessoa, de um personagem rocambolesco, Tristram, que recorre a todas as convenções literárias da época, fazendo pouco delas, para narrar sua vida.

E, quando as convenções e as palavras não bastam, recorrendo a grafismos como o desenho no meio do texto de uma linha em espiral para descrever o movimento de uma bengala no ar. O que deve ter sido um desafio para os tipógrafos da época. Sterne também foi um pós-moderno antes do moderno.

O americano John Barth, este um pós-moderno de hoje, escreveu sobre dois pós-modernos contemporâneos que admira, Calvino e Jorge Luis Borges. E tomou emprestado de Borges uma definição de dois valores que, combinados, descrevem a arte da dupla, Álgebra e Fogo. Álgebra (a “árdua álgebra” de Borges) significando a engenhosidade formal na construção de uma obra, o truque que surpreende ou desafia o leitor, ou pleiteia uma cumplicidade intelectual. Fogo significando o que comove, o que toca fundo.

Álgebra sem fogo acaba em malabarismo técnico sem alma, fogo sem álgebra acaba em literatura enjoativa, porque alma demais também enjoa. Para Barth, Calvino e Borges são os dois grandes escritores do nosso tempo porque, na sua ficção, atingiram como ninguém mais a fusão de álgebra e fogo. Barth descreve o que eles fazem – ou fizeram, pois os dois já se foram – como “virtuosismo passional”. Perfeito.