19 de julho de 2015 | N° 18231
LUÍS AUGUSTO FISCHER
Um Ano
Amanhã acaba minha experiência de um ano vivendo na Europa,
numa cidade mundial acossada pela sombra do terrorismo, ocupada por milhões de
turistas, vivida cotidianamente por gente comum, em suas padarias e bares de
esquina, em suas feiras-livres em todo bairro, em seu transporte público utópico
para um brasileiro.
Com suas calçadas em regra impecáveis, mas cheias de cocô de
cachorro. Com suas múltiplas máquinas de limpeza urbana, que recolhem lixo evitável,
como as toneladas de baganas de cigarro. Com seus espaços públicos bem
cuidados, pracinhas de bairro espalhadas por toda parte, nas quais as crianças
ficam à vontade e até bebês de seis meses são postos no chão, porque as mães
sabem que não há a menor possibilidade de cachorro entrar ali, nem na coleira.
Tive tempo de viver emoções intensas e inesquecíveis, como levar
os filhos ao colégio, a pé (o filho de patinete), e cruzar pela mãe cega que,
com seu cão-guia, levava a filha de oito anos todos os dias até a porta da
escola, atravessando com total segurança toda e qualquer rua – sempre
sinalizadas, com pintura no chão, sinal luminoso e, nas mais movimentadas,
sonoro também. Os motoristas sempre param, quando se trata de uma criança ou de
alguém com qualquer necessidade evidente.
Tempo de ouvir dezenas de línguas, incluindo o português de
Portugal, falado por zeladores de prédios e atendentes de comércio, e o português
brasileiro, nos pontos turísticos. Tempo de fazer um laço confortável com a
feirante de produtos “biô”, ecológicos, com a moça da padaria, com o chinês das
frutas. De conhecer o lugar das coisas no súper, de assinar o jornal, de
reviver a pequena felicidade familiar do comércio de rua, que Porto Alegre
quase nem conhece mais.
Deu tempo também para entrar em várias crises. A mais
recorrente, e mais profunda, era uma ambivalência: de vez em quando eu me
pegava sentindo a vida aqui como sendo minha, e portanto eu gastava tempos a
entender qual era a orientação política de certo ministro, ou o que significava
certa sigla dada como óbvia mas impenetrável para um estrangeiro; aí, eu me
corrigia pensando que aquele esforço não tinha sentido, porque eu precisava era
saber esses detalhes apenas sobre o meu mundo brasileiro, gaúcho, porto-alegrense.
Nem no Uruguai e na Argentina, tão próximos a nós, a gente entende isso!
E me vinha à lembrança um fragmento de texto do Caetano
Veloso, uma das crônicas que ele escreveu para o Pasquim, estando em Londres,
exilado pela ditadura militar. Ele andando por aquela outra cidade mundial – sobre
a qual compôs uma linda canção –, em outro momento histórico, sob outras pressões,
se dava conta que nada daquilo dependia dele, e que ele não dependia de nada
daquilo.
E este era o meu ponto: foi um ano todo vivendo pendurado
numa fragilidade, numa provisoriedade consciente, numa condição de trânsito. Os
mendigos e subempregados de Paris, os músicos e pedintes do metrô, os
imigrantes recentes que se tornam, por necessidade, vendedores de bugigangas em
pontos de grande afluxo de gente, a vizinha ranzinza com aspecto de
suprematista branca – eu passei por todos eles, sem nem sonhar em criar laço,
salvo o ultragenérico de ser, como eles, um ser humano.
Muitos amigos alertam agora que a volta pode ser traumática,
porque o ambiente brasileiro está tumultuado e agressivo, coisa que dá pra ver
e acompanhar mesmo de longe, por sinal um longe que perdeu a antiga
respeitabilidade, depois da internet. Saí daí antes do processo eleitoral do
ano passado, que parece ter sido um divisor de ânimos. Alguns perguntam se eu
preciso mesmo voltar.
Claro que preciso, por todos os motivos: vivi aqui com bolsa
federal e sou professor público em licença para estudar, e só aí estão duas razões
incontornáveis. Há a família, os amigos, a paisagem. Mas é mais: de algum modo
profundo, é em Porto Alegre, é no Brasil que me sinto como se eu dependesse das
coisas, e elas dependessem de mim.