03
de junho de 2014 | N° 17817
DAVID
COIMBRA
DE SACO
CHEIO
Se os ônibus vão ou não rodar durante a Copa, se o
Brasil devia ou não ter construído estádios, se os black blocs vão ou não tocar
fogo nas casas das mãezinhas deles, estou me lixando. Estou com saco cheio
dessas discussões, se você quer saber. Façam o que quiserem, pensem o que
quiserem, critiquem a mídia burguesa, o governo desonesto, a oposição
oportunista, as avós de vocês; não estou nem aí. O que me interessa é o futebol
e, se você não entende o que é o futebol, o jogo jogado, vá amolar outro. Não
quero conversar com você.
Quero
conversar com quem sabe, por exemplo, quem foi Marinho Chagas, que morreu no
fim de semana. Marinho foi o maior lateral-esquerdo que vi jogar. Melhor do que
Roberto Carlos. Talvez do mesmo nível de Junior. Antes de Marinho, os laterais
se preocupavam quase que exclusivamente com tarefas defensivas. Carlos Alberto,
o Capita, sabia atacar, fez até gol na Copa, mas sua primeira preocupação era a
marcação, tanto que jogou inclusive de zagueiro. Everaldo, a estrela dourada da
bandeira do Grêmio, foi só marcador na Copa de 70. Ele recebeu uma função
tática e a cumpriu. Mas Everaldo tinha boa técnica; se quisesse, poderia
funcionar como ala. Mas, não. Naquele tempo, lateral marcava ponta. Ponto.
Marinho
mudou isso. Ele aparecia no ataque, surpreendia o adversário, era o cavalo de
madeira no coração de Troia. Em 1976, Foguinho pediu a contratação de Marinho
pelo Grêmio. Seu sonho era tirá-lo da lateral e engastá-lo no centro do
gramado. Queria montar um meio-campo com Andrade, Tadeu Ricci e Marinho. Dizia
que com esse meio-campo poderia enfrentar o do Inter de Falcão, Carpegiani e
Escurinho. Poderia? Isso nunca descobriremos, mas, em 77, quando Tadeu enfim
veio para o Grêmio, seus colegas eram Victor Hugo e Iúra, e o Grêmio bateu com
autoridade o timaço do Inter.
Foguinho
sabia muito. Para minha felicidade, tive diversas chances de conversar e
aprender com ele. Ele conhecia as minudências do futebol, antevia o sucesso ou
o fracasso de um jogador observando-o a caminhar pelo campo e não ficava
perdendo tempo com essas xaropadas de hoje de FIFA e euros e o escambau. Aliás,
dias atrás um filósofo francês deu uma palestra no Fronteiras do Pensamento e
perguntou:
–
Vocês acham que o Neymar tem que ganhar tanto e um professor tão pouco?
Agora
me diga: como é que um sujeito que se denomina “filósofo” e recebe um belo
cachê para atravessar o Atlântico e vir aqui deitar falação comete uma redução
rasteira dessas? Nem merece que perca meu tempo escrevendo a respeito. Prefiro
falar sobre o Cruyff. No domingo, o Zini publicou uma bela entrevista do
Carpegiani acerca daquela partida em que o Carrossel de Cruyff amassou o Brasil
em 1974. Carpegiani contou que dias atrás reviu de novo aquele jogo e de novo
se entristeceu com a derrota. Acha que o Brasil não foi tão mal assim. Mas, no
fim da entrevista, o Zini perguntou se o Brasil venceria, caso aquela partida
fosse disputada de novo. Carpegiani ponderou:
–
Com o Cruyff em campo?
O
Zini disse que sim. Com o Cruyff em campo. E Carpegiani hesitou:
–
Não sei se venceríamos...
Lindo.
Carpegiani, naquele momento, rendeu preito a um dos deuses do futebol. Porque
era lindo de ver Cruyff jogar, assim como era lindo ver os algozes do
Carrossel, os alemães de Beckembauer. De Beckembauer se dizia que ele não sabia
qual era a cor da grama, porque jogava sempre de cabeça levantada. Algo
parecido do que se dizia de Didi, chamado de “Príncipe Etíope” por Nelson
Rodrigues. Didi era elegante, era um aristocrata de chuteiras e sempre se
orgulhou de com elas, com suas chuteiras, jamais ter pisado na bola.
A
bola que rola. A chuteira que chuta. A grama verde. A rede. O gol. É lindo
isso. Fiquem com seus escândalos. Eu fico com o futebol.