quarta-feira, 4 de junho de 2014


04 de junho de 2014 | N° 17818
MARTHA MEDEIROS

Não pode

Nunca tinha feito uma ressonância magnética. Primeira vez. Retirei os brincos, a roupa e coloquei um daqueles uniformes azuis de doente. Sentei no banco do corredor, de frente para uma parede, e fiquei ali uns 20 minutos esperando ser chamada. Tudo prometia ser lento, até meus pensamentos se arrastavam. Quando já estava quase pegando no sono (era noite), escutei meu nome e entrei na sala. Outra dimensão. Outro ritmo. Tudo veloz. Ouvi do médico: “Deita.

Levanta as pernas no três: um, dois, três. Tá aqui os fones de ouvido por causa do barulho. Tá aqui a campainha se precisar falar comigo. Não te mexe. Não pode. Não pode”. Levou um segundo e meio para me dizer tudo isso, emendando uma frase na outra como se fosse um cantor de rap. E lá me fui cápsula adentro. Só lembrava da parte do “não pode”.

Minha respiração ficou mais profunda. Não te mexe. Não pode. Respirar podia? Percebi meu peito subindo e descendo, arfando conforme eu inspirava e expirava. Deveria trancar a respiração? Havia um som constante nos arredores, parecia o de uma máquina de lavar roupa em funcionamento. E ali, dentro da cápsula, acontecia uma rave, batidão eletrônico, deu a maior vontade de dançar.

Não pode. Não pode. Não pode.

Claro que, não podendo nada, deu também uma coceira no queixo. Eu precisava tossir. Uma mecha do cabelo me incomodava junto ao pescoço. Quase funguei. Tive duas contrações involuntárias nas pernas. O corpo inteiro dava ordens para eu subverter a situação: vai, mulher, te mexe, coça, tosse, funga. E eu ali, múmia obediente, embalsamada, petrificada, ansiosa por movimento.

Basta a gente ouvir um “não pode” para o desejo acordar.

O proibido é uma tentação, sempre foi, desde Adão e Eva. Avisem-me que “não pode” e terei vontade de pular o portão que protege um jardim privado, de entrar na sala destinada apenas aos funcionários, de estacionar na vaga para idosos, de sentar à mesa reservada para quem ainda não chegou ao restaurante, de fumar dentro do avião – e eu nem fumo.

Mas impunidade não é para qualquer um. Cidadãos honestos que pulam muros, entram em salas privativas, estacionam onde não devem, sentam no lugar destinado a outros e fumam no banheiro da aeronave certamente serão multados, advertidos, humilhados. Só se mantém inalcançável o transgressor profissional, aquele que assalta alguém, rouba um carro – esse ninguém pega.

Então, eu, bem educada e temente às ordens que me dão, não me mexo. Faço apenas aquilo que pode, aquilo que resultará num diagnóstico certeiro, sem chance de equívoco: é uma mulher que dá para se confiar.

Que vasculhem meu esqueleto à vontade, não há ressonância que revele os pequenos crimes que nunca cometi.