06
de julho de 2014 | N° 17851
PAULO
SANT’ANA
Tristeza
testamentária
Deixa-me
aqui no meu canto sozinho que não quero que me amofinem com asneiras cada vez
mais desinteressantes.
Deixa-me
sozinho em meu canto a esperar o destino. Nada mais tenho a fazer que já não
tenha feito.
Cumpri
com todos os rituais do meu código de humanidades. Quando tinha de fazer o bem,
acabei fazendo-o. Quando não tinha que fazer o mal, acabei fazendo-o de modo
inconsciente.
Nada
mais tenho a fazer. Tudo que tinha que ser feito, o foi. Acabei até fazendo o
que não tinha que ser feito.
Deixa-me,
portanto, aqui no meu canto anônimo a cismar de que há pouco do que possa me
orgulhar e muito há que me envergonhe.
Deixa-me
no meu canto a perquirir do significado das injustiças que vi em torno de mim,
dos que tombaram ou enfraqueceram diante do arbítrio, da prepotência, do maior
amassando o menor, dos justos sem recompensa, dos fracos que desistiram.
Deixa-me
aqui no meu canto a pitar meu cigarrinho, essa delícia que no entanto me pesa
na consciência. Nessa fumaça que se vai espalhando, eu vejo pouco a pouco se
formando a imagem dos raros êxitos que tive e a brasa que a provoca me faz
lembrar das centenas de sonhos meus que se transformaram em cinzas.
Deixa-me
quieto, que para mim falta pouco.
Quando
pararem todos os relógios da minha vida e os necrológios noticiarem que morri,
só gostaria que quem me visse finalmente estático se aproximasse do meu cadáver
e dissesse: “Foi um sonhador. Ergueu castelos de quimeras e todos eles se
esfarelaram quando trombaram com os infortúnios da incompreensão. Mas viveu e
lutou, e só isso já justifica uma existência”.
Deixa-me
só no meu canto, o único lugar que me sobrou na vida.
Falta
pouco, mas isso dura tanto!
E se
vires alguém depois de me deixares quieto em meu canto, dize a ele que estou
aqui no posto final de sentinela, à espera de que o destino escolha a maneira
de me imolar.
Pois
eu não sabia que a vida teria um dia um fim?
Então,
abre passagem para a morte, que eu calculo até que suas profundezas possam
conter a felicidade que não conheci em vida.