sábado, 5 de julho de 2014


06 de julho de 2014 | N° 17851
PAULO SANT’ANA

Tristeza testamentária

Deixa-me aqui no meu canto sozinho que não quero que me amofinem com asneiras cada vez mais desinteressantes.

Deixa-me sozinho em meu canto a esperar o destino. Nada mais tenho a fazer que já não tenha feito.

Cumpri com todos os rituais do meu código de humanidades. Quando tinha de fazer o bem, acabei fazendo-o. Quando não tinha que fazer o mal, acabei fazendo-o de modo inconsciente.

Nada mais tenho a fazer. Tudo que tinha que ser feito, o foi. Acabei até fazendo o que não tinha que ser feito.

Deixa-me, portanto, aqui no meu canto anônimo a cismar de que há pouco do que possa me orgulhar e muito há que me envergonhe.

Deixa-me no meu canto a perquirir do significado das injustiças que vi em torno de mim, dos que tombaram ou enfraqueceram diante do arbítrio, da prepotência, do maior amassando o menor, dos justos sem recompensa, dos fracos que desistiram.

Deixa-me aqui no meu canto a pitar meu cigarrinho, essa delícia que no entanto me pesa na consciência. Nessa fumaça que se vai espalhando, eu vejo pouco a pouco se formando a imagem dos raros êxitos que tive e a brasa que a provoca me faz lembrar das centenas de sonhos meus que se transformaram em cinzas.

Deixa-me quieto, que para mim falta pouco.

Quando pararem todos os relógios da minha vida e os necrológios noticiarem que morri, só gostaria que quem me visse finalmente estático se aproximasse do meu cadáver e dissesse: “Foi um sonhador. Ergueu castelos de quimeras e todos eles se esfarelaram quando trombaram com os infortúnios da incompreensão. Mas viveu e lutou, e só isso já justifica uma existência”.

Deixa-me só no meu canto, o único lugar que me sobrou na vida.

Falta pouco, mas isso dura tanto!

E se vires alguém depois de me deixares quieto em meu canto, dize a ele que estou aqui no posto final de sentinela, à espera de que o destino escolha a maneira de me imolar.

Pois eu não sabia que a vida teria um dia um fim?


Então, abre passagem para a morte, que eu calculo até que suas profundezas possam conter a felicidade que não conheci em vida.