20
de abril de 2014 | N° 17769
O
CÓDIGO DAVID | DAVID COIMBRA
A força da
salsicha
Existem
1.500 tipos de salsicha na Alemanha. Mil e quinhentos. Se você estiver na
Alemanha e decidir se alimentar de salsicha todos os dias, poderá comer uma
salsicha diferente por dia, sem repetir, durante quase quatro anos.
Fascinante.
É
como as Ilhas Maldivas. Existem 1.500 Ilhas Maldivas cercadas pela água salgada
do distante Oceano Índico, lá perto do Sri Lanka, todas elas paradisíacas.
Ilhas azuis. Deve ser lindo ver as Ilhas Maldivas.
Assim,
confesso aqui um sonho dourado que cevo: conhecer todas as Ilhas Maldivas e
todas as especialidades de salsichas da Alemanha concomitantemente. Meu projeto
é comer um tipo de salsicha alemã, estando, durante esta refeição, em um tipo
diferente de Ilha Maldiva por dia, passando desta forma quatro agradáveis anos
da minha existência.
Perceba
como é fácil de me fazer feliz: uma salsicha, uma ilha e presto!
Mentiras,
mentiras
Mas,
por ora, enquanto não realizo meus desejos outrora recônditos e agora públicos,
quero falar de hábitos alimentares.
Sempre
me intrigou o apreço do civilizado povo alemão pela salsicha. Aliás, os alemães
juram que um deles inventou a salsicha, por volta do século 15.
Mentira.
Assim
como é mentira a assertiva daquele verso imortal que Benito di Paula urdiu em
algum dia de rara inspiração nos anos 70:
Bendito
seja
Bendito
seja
O
alemão
Que
inventou a cerveja
Não.
Não
foram os alemães que inventaram a cerveja; foram os egípcios. Os alemães apenas
a sublimaram, porque a cerveja alemã é uma das delícias que fazem valer a pena
viver.
A
salsicha também. A salsicha foi divinizada pelos alemães, mas não foram eles
que a conceberam. Foi um romano chamado Marcus Gavius Apicius, popularmente
conhecido como “Apício”.
Orgias
até a morte
Esse
Apício foi contemporâneo de Jesus Cristo e, como Ele, viveu entre Augusto e
Tibério. Era um gourmet feroz. Escreveu o primeiro livro de gastronomia da
História, “Sobre a Culinária”, e viveu literalmente à tripa-forra.
O
gosto de Apício pela chamada boa mesa foi se sofisticando com os dias. Era um
homem rico e, sendo assim, tinha acesso ao que de melhor existia no vasto
Império Romano. Um dia, ficou sabendo que nos mares da Líbia nadavam camarões
gigantes de tamanho e sabor únicos. Alugou um navio, deslizou até lá, viu e
provou os camarões, e voltou sem nem pisar em terra. Inventou, preparou e serviu
acepipes exóticos, como cristas de aves fritas e calcanhares de equinos
recheados. Suas orgias eram famosas. Gastou tanto em festa, comida e bebida,
nosso generoso Apício, que foi à falência. Então, concluindo que não lhe
sobravam mais fundos para viver como gostava, preferiu a morte. Suicidou-se,
mas deixou seu livro de receitas como legado. E, entre suas saborosas criações,
está ela. A salsicha.
Engordando
lesmas
Feito
esse reparo histórico e restabelecida a justiça, voltemos aos bravos povos
germânicos.
Mas,
não! Não tão depressa.
Antes
disso, ocorre-me que você pode estar curioso acerca das receitas de Apício.
Sim, imagino que esteja. Quem sabe na próxima Sexta-Feira Santa, diante do
interdito de consumo da carne bovina, você possa cometer um dos pratos que
Apício preparava há dois mil anos? Que tal, hein?
Como
será difícil encontrar “Sobre a Culinária” mesmo nos sebos mais bem fornidos,
vou reproduzir a seguir uma rápida receita que certamente fará sucesso entre
seus amigos e familiares. É o...
Escargot
ao leite
“Lave
bem os caramujos e remova a membrana, para que eles possam sair da concha.
Coloque-os num recipiente com leite e sal por um dia, e nos dias seguintes
somente com leite. Remova os resíduos a cada hora. Quando eles tiverem
engordado ao ponto de não conseguirem se recolher totalmente em suas conchas,
cozinhe-os com azeite.”
Aí
está! Deve ser uma delícia não apenas provar esses escargots, mas vê-los
entalar na entrada da concha quando estiverem gordinhos. Faça e sirva para quem
você mais gosta.
A
semana do peixe
Apício
também inventou o foie gras para gáudio dos franceses e, como já disse, a
salsicha, para gáudio dos alemães.
E
eis que chegamos aonde eu queria chegar desde o início. Nos hábitos
alimentares. Porque na chamada Semana Santa come-se peixe e a cada Semana Santa
fico impressionado com o amor do gaúcho pela carne vermelha. Tenho amigos que
não conseguem passar um único dia sem um bife, sem uma carne de panela, sem um
churrasco.
Isso
muda a psiquê de um povo, não apenas sua saúde física. Muito do requinte
francês se deve à leveza do patê, assim como a praticidade germânica talvez
tenha sido gerada pelo consumo diário de embutidos, de preparo tão fácil e
rápido.
Já
os chineses e os japoneses, do que eles se alimentam?
De peixe.
Exatamente
o prato que angustia o gaúcho na Sexta-Feira Santa. Bem. Olhe para chineses e
japoneses e o que você vê?
Paciência.
Não
é a filosofia milenar de Lao Tsé ou Confúcio que faz com que os homens do
Oriente Longínquo sejam pacientes. É a lida com o peixe, que não é laçado com
corda nem ferrado em brasa, que não derrama sangue quente quando abatido, que
não é domado a urros, nem perseguido a galope, que não muge nem tuge, mas morre
em silêncio. Em resignação.
A
paz da morte dos peixes traz essa calma aos orientais que o consomem. Assim, o
Japão e a China até podem ser buliçosos, mas é um bulício de multidão, não de
pressa, não de ansiedade, não de quase desespero como se vê por aqui.
Peixe,
pois.
Essa
é a solução para você, gaúcho angustiado: mais peixe na sua vida, e não apenas
na semana da Páscoa.