28
de abril de 2014 | N° 17777
L.F.
VERISSIMO
Eu e ele
No
vertiginoso mundo dos computadores, o meu, que devo ter há uns quatro ou cinco
anos, já pode ser definido como uma carroça. Nosso convívio não tem sido muito
confortável. Ele produz um texto limpo, e é só o que lhe peço. Desde que
literalmente metíamos a mão no barro e depois gravávamos nossos símbolos
primitivos com cunhas em tabletes até as laudas arrancadas da máquina de
escrever para serem revisadas com esferográfica não havia maneira de escrever
que não deixasse vestígio nos dedos.
Nem
o abnegado monge copiando escrituras na sua cela asséptica estava livre do
tinteiro virado. Agora não. Damos ordens ao computador, que faz o trabalho sujo
por nós. Deixamos de ser trabalhadores braçais e viramos gerentes de texto.
Ficamos pós-industriais. Com os dedos limpos.
Mas
com um custo. Nosso trabalho ficou menos respeitável. O que ganhamos em asseio
perdemos em autoridade. A um computador não se olha de cima, como se olhava uma
máquina de escrever. Ele nos olha na cara. Tela no olho. A máquina de escrever
fazia o que você queria, mesmo que fosse a tapa. Já o computador impõe certas
regras. Se erramos, ele nos avisa. Não diz “burro!”, mas está implícito na sua
correção.
Ele
é mais inteligente do que você. Sabe mais coisas, e está subentendido que você
jamais aproveitará metade do que ele sabe. Que ele só desenvolverá todo o seu
potencial quando estiver sendo programado por um igual. Isto é, outro
computador. A máquina de escrever podia ter recursos que você também nunca
usaria (abandonei a minha sem saber para o que servia “tabulador”, por
exemplo), mas não tinha a mesma empáfia, o mesmo ar de quem só aguenta os
humanos por falta de coisa melhor no momento.
Eu e
o computador jamais seríamos íntimos. Nosso relacionamento é puramente
profissional. Mesmo porque, acho que ele não se rebaixaria ao ponto de ser meu
amigo. E seu ar de reprovação cresce. Agora mesmo, pedi para ele enviar esta
crônica para o jornal e ele perguntou “tem certeza?”.