19
de abril de 2014 | N° 17768
NÍLSON SOUZA
Gabo vive
No
dia em que começaram a matá-lo, García Márquez deixou o hospital às 13h45min de
uma tarde ensolarada na Cidade do México e foi conduzido de ambulância para sua
casa no bairro colonial de San Ángel para receber cuidados paliativos e o
carinho de seus familiares. Ninguém sabe se ele sonhou que atravessava uma mata
de figueiras-bravas, onde caía uma chuva miúda e branca, como seu personagem
Santiago Nasar.
Tampouco
se sabe se foi feliz no seu último sono longe de casa. O que se sabe, pelo
noticiário, é que estava com câncer terminal e que os médicos decidiram não
sacrificá-lo com um tratamento doloroso, considerando o avançado estado da
doença e sua idade. O autor de Cem Anos de Solidão estava com 87 anos.
Dizem
seus acompanhantes que ele enfrentou a última internação com bom humor, embora
incomodado com a presença implacável de jornalistas na frente do hospital.
Foram eles, os homens da mídia, que começaram a matá-lo antes da hora,
cumprindo os desígnios de uma atividade que o próprio escritor classificou um
dia de “melhor profissão do mundo”. Jornalista de origem, o genial romancista
colombiano concluiu assim o seu célebre texto sobre a missão de informar: “Quem
não sofreu essa servidão que se alimenta dos imprevistos da vida, não pode
imaginá-la.
Quem
não viveu a palpitação sobrenatural da notícia, o orgasmo do furo, a demolição
moral do fracasso, não pode sequer conceber o que são. Ninguém que não tenha
nascido para isso e esteja disposto a viver só para isso poderia persistir numa
profissão tão incompreensível e voraz, cuja obra termina depois de cada
notícia, como se fora para sempre, mas que não concede um instante de paz
enquanto não torna a começar com mais ardor do que nunca no minuto seguinte”.
Pois
agora ele é a notícia, como, aliás, sempre foi desde que começou a se destacar
na literatura. Morreu na última quinta-feira, em casa. Não chega a ser um
desses imprevistos da vida. É, antes, o previsto, o certo, o inevitável. Uma
pena que tenha chegado a hora desse ser humano tão criativo, que encantou
milhões de leitores com seus livros envolventes e sua realidade fantástica.
Mas, como ele mesmo ensinou em sua autobiografia, a vida não é o que a gente
viveu, mas sim o que a gente recorda, e como a gente recorda para contá-la.
Esse
homem realmente viveu para contar. E contou com maestria, paixão e empatia com
os leitores. Mereceu, portanto, que sua morte anunciada chegasse suave, sem
demasiado sofrimento e na companhia de seus afetos. De minha parte, na condição
de leitor, admirador e seguidor da profissão que ele enalteceu, só posso dizer
que acabei de pichar simbolicamente uma frase no meu coração: “Gabo vive!”.