segunda-feira, 2 de abril de 2018


02 DE ABRIL DE 2018
CELSO LOUREIRO CHAVES

ARQUEOLOGIA


O centenário da morte de Claude Debussy, há pouco em março, foi uma desculpa para ouvir a música desse francês que deu o pontapé inicial na música de concerto moderna, lá no século 19. Datas redondas servem para isso e não para muito mais. Aí dá para ouvir Debussy de tudo que é jeito. Mais sentimental ou menos sentimental. Cheio de vapores ou em dia claro de verão. Como se a música estivesse cheia de teias de aranha ou bem espanadinha.

Dá até para ouvir Debussy tocado pelo próprio Debussy, uns registros de bem mais do que cem anos atrás, duvidosos como essas coisas que chegam de longe. Debussy registrou os seus greatest hits na alta tecnologia da época, rolos de papelão perfurados registrando fielmente o sabor da sua interpretação. Depois, acoplados a algum piano especialmente preparado para isso, os rolos se transformam num pianista quase ao vivo, fantasma movendo teclas, apertando pedais, construindo sons de lá do outro lado da vida.

Como há milhares de maneiras de tocar uma música, é bem possível que algum desavisado, ao ouvir esses registros e sem saber da procedência do pianista, possa dizer: "Mas não é assim que se toca Debussy!". Essa é a surpresa de ouvir um compositor tocar sua própria música, à distância de um século, e se dar conta de que nem sempre as ideias dele coincidem com as nossas. Bem coisa da música moderna do final do século 19 - se pode ouvir como ela era no seu próprio tempo e não nos tempos dos nossos preconceitos, mesmo filtrada por uma técnica rudimentar.

E lá se vai para a lata do lixo aquele mito das interpretações "historicamente informadas", performances que pretendem recuperar as músicas como elas eram no seu tempo, como se história não houvesse. A essa altura, ouvir João Gilberto cantando o Corcovado original talvez dê a mesma impressão de incorreção: "Ah, mas não é assim que se canta bossa-nova!". O João clássico é de 60 anos atrás. O Debussy pianista é de 50 anos antes. Música vai virando arqueologia do passado recente e nem sempre as colcheias e semicolcheias que se encontra são as que se esperava encontrar.

CELSO LOUREIRO CHAVES