06
de abril de 2014 | N° 17755
MARTHA
MEDEIROS
Alguma coisa
Recebi o e-mail de uma mulher madura contando que ela
e o marido estão praticamente vivendo um para o outro, pois estão decepcionados
com os demais semelhantes - cuja semelhança ela não vê, aliás. Resumo aqui suas
palavras: Somos instruídos e temos ótimo pique, porém estamos cada vez mais
isolados, os filhos moram longe e as demais pessoas não nos dizem nada.
Gostamos de coisas que ninguém gosta. Nosso nível de tolerância é mínimo diante
da hipocrisia humana, do politicamente correto, do bairrismo, dos fanáticos,
dos mal-educados, dos ridículos, dos sem noção, dos burros, dos ignorantes e da
manipulação da massa através dos meios de comunicação.
Escapei
não sei como. Ela diz que comigo até que gostaria de conversar, e me pediu
opinião sobre sua ansiedade. “Se meu marido morrer, ficarei perdida”.
Bom,
eis um caso de uma mulher que cruzou com sua alma gêmea, o que a coloca em
vantagem. Porém, procura almas gêmeas também na vida social. Amiga, desista.
Você já encontrou a sua e casou com ela, valorize a sua sorte, não seja
fominha.
Brincadeiras
à parte, dizer o quê? Afora os seres intragáveis, a maioria das pessoas possui
alguma coisa que fecha com a gente. Alguma coisa. Não precisa fechar em tudo.
Tem aquela amiga que é ótima para viajar, tem a santa que ouve nossos lamentos,
aquela outra que é uma alegre parceira de indiadas, a que sempre tem uma bolsa
de festa para emprestar, a que se oferece para dar carona, a que é companheira
para assistir filmes iranianos, a que diz tanta bobagem que é impossível não
rir. Alguma coisa, entende?
Minha
leitora deveria diminuir o nível de exigência e extrair das pessoas o seu
melhor, deixando o pior pra lá. A vizinha chata pode ser uma ótima professora
de espanhol, a avarenta pode preparar um risoto caprichado, a cafona pode ser
aquela que ficará na cabeceira da sua cama quando você estiver com um febrão.
Todos têm seu lado A e B - nós, inclusive.
Compreendo
que minha leitora tem um estilo de vida arrojado e uma cabeça cosmopolita que
destoa da cidade onde vive, que não é nenhuma Nova York. Então por que não se
muda para uma urbe mais vibrante? Se não der, que baixe a guarda e procure as
agulhas no palheiro, elas existem. Tive uma amiga que igualmente acreditava ter
nascido no planeta errado, para ela todos também eram bairristas, ignorantes e
ridículos - e quanto mais ela discursava sobre seu inconformismo, mais ela
própria parecia bairrista, ignorante e ridícula. A falta de condescendência nos
bitola.