17
de abril de 2014 | N° 17766
L.F.
VERISSIMO
Leituras
Os
necrológios do recém falecido historiador francês Jacques le Goff destacaram
que ele mudou a nossa maneira de ver a Idade Média. Medievalista emérito, le
Goff descobriu no período muito mais significados do que se imaginava e
destruiu alguns clichês sacramentados sobre a época. A Idade Média não teria
sido apenas uma ponte entre o miasma sulfúrico da Idade das Trevas e a Renascença,
mas uma era de transformações importantes, assim na Terra como no Céu.
É do
Le Goff a tese de que o Purgatório foi inventado para que quem praticasse a
usura, que era pecado, não fosse direto para o Inferno mas tivesse a
oportunidade de se regenerar no caminho e escapar da punição, o que representou
um grande impulso para o nascente sistema bancário. Assim, o capitalismo, que
mudaria o mundo, começou mudando a cosmogonia cristã.
O
que a gente estranha nessas reavaliações do passado é que a História se preste
a tantas releituras. Imagina-se que o acontecido está acontecido e que seja
impossível reinterpretar o que já se congelou como fato histórico. Na verdade,
tudo é interpretação. O que acontece com o fato histórico é o mesmo que
acontece com a lei, que não é uma para todos mas para cada um de acordo com a
sua leitura. Toda vez que, por exemplo, no Supremo há uma votação fragmentada,
uma maioria derrotando uma minoria, isto significa que uma leitura da lei
subjugou outra leitura.
Quando
a questão é de constitucionalidade, a estranheza é maior: como pode uma
interpretação da Constituição ser diferente de outra se a Constituição é a
mesma? Há dias, o ministro Joaquim Barbosa deu o único voto favorável ao
julgamento do Azeredo e do mensalão tucano no Supremo – todos os outros
ministros votaram contra.
Azeredo
será julgado pela Justiça do seu Estado, se o crime pelo qual é acusado não
prescrever antes. O voto do Barbosa foi exageradamente subjetivo, para evitar
que acusassem o Supremo – como a Igreja mudando a configuração do Além – de
adotar dois jogos de pesos e medidas, um para o PT e outro para os outros, ou
sua leitura da lei foi a única correta?
O
passado, já disse alguém, é uma terra estranha, cheia de surpresas para quem a
visita. Reinterpretá-la é sempre uma aventura intelectual, como foi para Le
Goff. A variedade de leituras das leis também pode ser positiva, quando não é assustadora.
Todo o sistema de instâncias do Judiciário existe para que o subjetivismo não
domine e deforme os julgamentos. Mas que a gente estranha, estranha.
PAPO
VOVÔ
Lucinda,
nossa neta de seis anos, pediu para eu me inspirar – a palavra é dela – e
inventar uma história para a qual ela já tem o título: “A batata assassina”. Estou
aceitando sugestões.