sexta-feira, 4 de abril de 2014

HÉLIO SCHWARTSMAN

Empáfia hipocrática

SÃO PAULO - O caso da grávida obrigada a fazer uma cesariana contra a sua vontade atesta o fracasso da medicina e da Justiça brasileiras.

Em primeiro lugar, faltou à médica habilidade para convencer a futura mamãe de que a situação era grave --se é que era mesmo; obstetrícia não é ciência exata-- e requeria o procedimento cirúrgico. Como a natureza dotou nossa espécie de instintos de sobrevivência e materno fortes, o mais provável é que, com a abordagem adequada, ela tivesse sucesso.

O que sobrou na doutora foi a empáfia hipocrática. Numa sociedade democrática, médicos são prestadores de serviço. Cabe a eles propor ao paciente o que lhes pareça a melhor estratégia terapêutica, sem nunca deixar de apontar os riscos e indicar possíveis alternativas. A decisão final, porém, compete exclusivamente ao paciente ou seu responsável legal.

Se o médico não concordar, pode exigir que o paciente assine termos que o isentem de responsabilidade e tem ainda o direito de deixar o caso. Mas é só. Mobilizar a polícia para ir contra a vontade de um paciente que não esteja em surto psicótico representa a falência da medicina.

Pior só a intervenção da Justiça. Aqui o Judiciário, no afã de fazer o bem, atropelou sua própria razão de ser, que é assegurar um núcleo de garantias fundamentais, entre as quais está a recusa a procedimentos médicos. Fazer o bem e salvar vidas é muito fácil. Com apenas quatro medidas (proibição do fumo e do álcool, obrigatoriedade de exercícios físicos e velocidade máxima de 40 km/h) acrescentaríamos alguns anos à expectativa de vida do brasileiro. Só que criaríamos uma ditadura.

A bioética é uma disciplina triste, já que muitos de seus desfechos são funestos, mas ela é relativamente simples no sentido que grande parte dos problemas podem ser resolvidos apenas deixando que o paciente exerça sua autonomia, que, obviamente, inclui o direito de tomar decisões que pareçam erradas a todos.


helio@uol.com.br