19
de outubro de 2014 | N° 17957
CÓDIGO
DAVID | David Coimbra
MIL PALAVRAS A
MENOS
Decidi economizar mil palavras e plasmar com foto da
minha própria lavra o assunto sobre o qual quero escrever.
É
sobre o outono. E, como os jornais agora têm som, vou publicar no meu blog a
trilha sonora deste texto, As Quatro Estações, de Vivaldi, evidentemente
destacando o terceiro concerto, O Outono.
Aliás,
a respeito de Vivaldi, você sabia que foi do nome dele que surgiu a palavra
“vivaldino”?
Pois
é. Vivaldi era um padre que trabalhava como professor de música em um orfanato
de moças. Você sabe a ascendência que o mestre tem sobre as alunas, quaisquer
alunas, em qualquer tempo... Bem, Vivaldi aproveitava-se do amor filial que
elas sentiam por ele para repoltrear-se, espanar-se e refocilar-se com as
meninas. Pelo menos com uma delas o caso terminou em ferocíssima paixão mútua.
Donde, Vivaldi era um baita vivaldino, ao contrário dos professores de hoje,
que não se relacionam com suas pupilas fora do ambiente acadêmico.
Mas
talvez não fosse bem assim. Na verdade, os homens da Europa ocidental da época
tinham era inveja de Vivaldi, o padreco com todas aquelas anjinhas... Mais
excitados eles ficavam porque as moças do coral formado por Vivaldi, na
intenção da castidade, cantavam atrás de grades, protegidas pela escuridão, sem
jamais serem vistas pela plateia. Os homens ouviam aquelas vozes maviosas e
deixavam a imaginação levitar. Saíam das apresentações suspirando:
–
Ah, Vivaldi, seu safado...
Um
dia, porém, o filósofo Rousseau pediu para ser apresentado àquelas beldades. Ele
queria vê-las, precisava vê-las. Vivaldi concordou e o filósofo foi ter com
elas. Quase saiu correndo. A mais bonitinha era como a mulher de um ex-jogador
do Inter que, segundo o Guerrinha, foi ao zoológico de Sapucaia e deixou o leão
traumatizado. O leão a viu, sua juba se arrepiou de horror, ele foi para o
fundo da jaula e não de lá saiu mais. No dia seguinte, o administrador do zoo
estava ligando para o jogador, para pedir indenização.
Assim
eram as moças de Vivaldi, de acordo com Rousseau.
Mas
pode ser caso de inveja também.
De
qualquer forma, o que importa é o talento de Vivaldi, e isso ele tinha aos
quilos. Quando traduziu o outono em linguagem musical, inspirou-se no outono do
Hemisfério Norte, evidentemente. Eu, ao me instalar aqui, neste outro lado do
planeta, o fiz no verão e, sempre que elogiava a beleza da cidade, todos
respondiam que esperasse pelo outono, o outono é que era lindo, eu tinha de ver
o outono.
Bem.
O outono chegou. “Fall”, como eles chamam, e é um nome bem apropriado. As folhas
das árvores realmente caem, ou, antes, dançam no ar, levadas pela brisa, e
formam tapetes coloridos nas ruas. De repente, você dobra uma esquina e entra
num corredor forrado de amarelo, com as copas das árvores vermelhas ou cor de
laranja. É lindo. Chega a ser emocionante.
Lembro
de um dia, quando trabalhava em Santa Catarina, em que fui a Florianópolis para
contratar um famoso cronista político local para a rádio da qual eu era gerente
de jornalismo. Fomos almoçar em um restaurante da Beira-Mar Norte, sentamos ao
lado do janelão com vista para a praia. Em meio à conversa, de repente o tal
cronista olhou para o lado de fora, para o mar que bramia, e suspirou:
– É
um privilégio...Na sequência da conversa, essa cena se repetiu. Entre uma frase
e outra ele se distraía, mirava a imensidão do mar, ouvia o rosnar das ondas
que iam e vinham sem parar e murmurava mais para si mesmo do que para mim:
– É um privilégio...
Aqui
também estou às franjas do oceano, mas não foi a paisagem grandiosa do mar que
me encantou, e sim o colorido do outono, as árvores frondosas de copas
amarelas, vermelhas, verdes ou laranjas contrastando com o azul suave do céu,
as pessoas caminhando sem pressa pelas ruas, muitas delas sorridentes, decerto
embevecidas com a doçura da estação, talvez pensando, como eu, que ver a beleza
do mundo é um privilégio. Sim, é um
privilégio.