terça-feira, 21 de outubro de 2014


21 de outubro de 2014 | N° 17959
LUÍS AUGUSTO FISCHER

O CARA CANTANDO

Absorto no vagão de metrô apenas cheio, ouço um cara começar a cantar. Eu media o número de pessoas que, no meu campo de visão, mexiam em celular, em contraste com os que liam livro ou outro papel. O canto me convocou.

Em regra, quem pede dinheiro dentro dos vagões (nem tanta gente assim) não canta: ou toca algum instrumento, ou então faz um discurso sobre dificuldades da vida. Mas este cantava. Virei a cabeça e o vi: um homem adulto, entre 30 e 45 anos, cabelos pretos e cara de indiano. Não olhava para nada em particular – sustentava o olhar numa direção neutra, talvez para para não precisar encarar ninguém.

Não dava para entender nenhuma palavra do que cantava. Zero. Cantava em uma língua não ocidental, com sons que não sabemos fazer. Mas o temperamento do que cantava era claro: uma canção dolente, triste, com vogais prolongadas, esticadas em direção a algum tema, lugar, rosto, algo de que ele tinha saudade, me parece. Ou o que era?

Casinha Pequenina. Se Esta Rua Fosse Minha. Negrinho do Pastoreio. Serenô, que cai, que cai. Terezinha de Jesus. Algo assim?

Quando passou ao meu lado vi seus pés imundos, chinelos em estado lamentável, rimando com a latinha pobre em que es­perava receber moedas, as distraídas moedas da caridade trivial. Não tinha moedas comigo, passei a vez.

(Minha mulher, que também presenciou a cena, me contou depois que, ao irromper o canto, imediatamente tentou ver a roupa do cantor – tinha medo de que estivesse com um capote, porque lhe passou na cabeça a hipótese de um homem-bomba.)

Era mesmo saudade? De que horizonte ele sentia saudade? De que laço amoroso? De que época? Paris deve ter desmentido seus sonhos, negou lugar integrado a ele, talvez a sua família toda. Sobrou a alternativa do metrô – não a estação, em que há de tudo, de uma jovem folk estilosa até uma banda inteira de excelentes músicos dos Bálcãs, nos dois casos com CDs à venda, e sim o inóspito vagão, em que pouca gente vai achar graça colaborar.


O que era que o cara cantava?