21
de dezembro de 2014 | N° 18020
MOISÉS
MENDES
Adeus, Sarney
Construí
fantasias, com cenários quase sempre majestosos, para alguns homens públicos
que nos hipnotizaram com suas surpresas e fingimentos. Nunca por um Collor,
desmascarado pela própria obviedade. Mas um Sarney, que visto de frente seria
uma coisa, de lado virava outra, tinha nuances até de costas e assim se
apresentava como um coronel em busca da transcendência.
Elaborei
fantasias para Sarney, o aliado do golpe que ocupou o lugar de Tancredo em
1985. Quando assumiu, Sarney nos revelou avessos de quase tudo o que se poderia
esperar dele. Na fantasia que construí, o Brasil seria um novo país a partir do
Plano Cruzado, teríamos reforma agrária e os pobres tomariam iogurte.
Sarney
foi a um congresso de trabalhadores rurais para dizer que iria retalhar os
latifúndios. Acabaria com a inflação e criaria um mercado interno forte.
Não
deu certo. Na quinta-feira, Sarney acordou cedo e foi para o Senado para o
último discurso. O plenário estava vazio quando ele começou:
–
Quero dizer que esta é a última vez que ocupo a tribuna parlamentar, que
frequentei desde 1955.
De
repente os colegas começaram a chegar.
–
Quis fazer cedo para que não tivesse ninguém, para falar às cadeiras vazias,
mas a Casa está enchendo.
E a
casa se encheu para ouvir Sarney dizer que abomina a corrupção, que os partidos
não valem nada, os políticos sucumbem aos interesses dos financiadores de
campanha, que é preciso moralizar o governo e que a reeleição só prejudica o
país.
Enquanto
Sarney discursava, os jornais anunciavam pela internet que Maluf iria retornar
à Câmara dos Deputados. Maluf foi liberado pelo Tribunal Superior Eleitoral
para ser diplomado. Reverteu-se uma decisão do próprio TSE, que antes o
considerou inelegível por condenação por corrupção. E Maluf disse sobre a
decisão:
–
Meus queridos, eu sempre confiei na Justiça deste país.
Sarney
ia embora do Senado discursando contra os corruptos e Maluf anunciava o retorno
exaltando sua confiança no Judiciário.
Sarney
é o Brasil arcaico na sua obra humana exemplar. É um caboclo, quase uma figura
de barro de mestre Vitalino, um político artesanal que arranja emprego para
parentes, gerencia a corrupção paroquial e exerce o poder de agregar seguidores
no Congresso para lotear governos.
Maluf
frequenta outro departamento, o da disfunção da política no maior centro urbano
do país. É a expressão da pilantragem liberal da linha de montagem
industrializada. Nunca teria a confiança que o boneco barroco maranhense
conquistou no Cruzado.
Sarney
teve, em 1986, a
adesão da elite e de intelectuais aos seus projetos redentores, que Maluf, um
medíocre, nunca sonharia ter. Sarney brilhou até ser desmascarado como farsa na
representação do que seria a versão do Getúlio do Maranhão, reformista,
disposto a conspirar contra as próprias origens e a enfrentar o empresariado
mais conservador, banqueiros, latifundiários.
Maluf
nunca nos ofereceu a chance de pensar que ele também poderia se redimir, porque
não dispõe de nenhum recurso que o absolva como aberração moral. Eu comeria
rapadura com José Ribamar Ferreira Araújo da Costa Sarney na varanda da
casa-grande em São Luís, mas nunca compartilharia nada com Maluf.
Os
coronéis da política nos oferecem a força literária dos que fingem até na hora
da despedida, como Sarney fingiu querer a solidão de um discurso para o
plenário vazio