14
de dezembro de 2014 | N° 18013
ANTONIO
PRATA
Dar cabo
Aos
oito anos de idade, descobri que o ser humano não prestava. Estava no banco de
trás do carro, descendo a 23 de Maio, li “Abaixo a ditadura!” num muro e
perguntei pro meu pai o que significava aquilo.
Meu pai, cuja particularíssima
pedagogia baseava-se no princípio de que as crianças deviam ser tratadas como os
adultos, sem filtros, me deu uma resposta bem detalhada. Meia hora mais tarde,
tendo passado pelos porões do DOI-CODI, pelo pau de arara, pela coroa de
cristo, pela cadeira do dragão e por minha prima Julieta, aos 20 anos, sendo
violentada com um cabo de vassoura enrolado por um fio desencapado, cheguei,
lívido, em casa.
Nas
décadas de 60 e 70, milhares de brasileiros sofreram horrores semelhantes aos
da minha prima: 434 deles não sobreviveram, segundo o relatório da Comissão
Nacional da Verdade, publicado na última quarta. E, apesar de todas essas
histórias serem há muito conhecidas e documentadas, apesar de boa parte de seus
responsáveis estarem vivos, há quem ache que o melhor é deixar tudo pra trás.
“Eram
outros tempos”, “O mundo estava polarizado”, dizem os que querem minimizar
cabos de vassoura com fios desencapados. Verdade, o mundo estava polarizado e o
Brasil também, mas o embate ocorria dentro do campo democrático. Então veio o
golpe de 64 e aqueles que temiam por aqui uma improvável Cuba de Fidel nos
impuseram a certeza de uma Nicarágua dos Somoza, um Haiti de Papa e Baby Doc,
uma República Dominicana de Trujillo.
“Ninguém
ali era santo”, “A luta armada não queria restituir a democracia, mas instalar
uma ditadura de esquerda”, dizem os que acham compreensível deixar um ser
humano pendurado a noite inteira de cabeça para baixo, nu. Não vamos entrar no
mérito de que muitos dos mortos e torturados sequer estavam na luta armada. Não
vamos entrar no mérito de que um golpe militar tende a radicalizar um pouco a
postura da oposição. Apenas aceitemos, hipoteticamente, que todos os torturados
e mortos quisessem, de fato, instituir uma ditadura de esquerda.
Mais
ainda: aceitemos, hipoteticamente, que eles quisessem matar todas as
criancinhas brasileiras e comê-las com farinha. Ainda assim, o Estado que os
torturasse ou os matasse estaria cometendo um crime. O Estado detém o monopólio
do uso da violência justamente para garantir a lei: não pode agir ao largo
dela.
“Revanchismo”
é o termo que vem sendo usado contra os que desejam ver punidas as violações
dos direitos humanos, durante a ditadura. Ora, se você é assaltado e quer ver o
bandido na cadeia, está sendo “revanchista”? Se você tem um pai, uma filha ou
um irmão morto e quer ver os assassinos na cadeia, está sendo “revanchista”?
Pois por 21 anos o Estado brasileiro assaltou, assassinou e violou os direitos
de seus cidadãos: com Atos Institucionais, com mentiras, com cabos de vassoura
enrolados por fios desencapados. Cabe a ele reconhecer seus crimes e prender os
responsáveis. Do contrário, estará não só desrespeitando a todos os que
sofreram a sua barbárie, mas, pior, estimulando as torturas e assassinatos que
seguem acontecendo Brasil afora, todo dia, pelas mãos da polícia.
Os
anos de chumbo não são águas passadas: continuam a mover nossos moinhos de moer
gente.
ANTONIO
PRATA É ESCRITOR, AUTOR NU, DE BOTAS (2013). ESCREVE SEMANALMENTE NESTE
CADERNO