18
de dezembro de 2014 | N° 18017
L.
F. VERISSIMO
Os dois
lados
Na
reação ao relatório da Comissão da Verdade sobre as vítimas da ditadura,
afirma-se que, para ser justo, ele deveria ter incluído o outro lado, o das
vítimas da ação armada contra a ditadura. Invoca-se uma simetria que não
existe. Nenhum dos mortos de um lado está em sepultura ignorada como tantos
mortos do outro lado.
Os
meios de repressão de um lado eram tão mais fortes do que os meios de
resistência do outro, que o resultado só poderia ser uma chacina como a que
houve no Araguaia, uma estranha batalha que – ao contrário da batalha de
Itararé – houve, mas não deixou vestígio ou registro, nem prisioneiros. A
contabilidade tétrica que se quer fazer agora – meus mortos contra os teus
mortos – é um insulto a todas as vítimas daquele triste período, de ambos os
lados.
Mas
a principal diferença entre um lado e outro é que os crimes de um lado,
justificados ou não, foram de uma sublevação contra o regime e os crimes do
outro lado foram do regime. Foram crimes do Estado brasileiro. Agentes
públicos, pagos por mim e por você, torturaram e mataram dentro de prédios
públicos pagos por nós.
E
enquanto a aberração que levou à tortura e outros excessos da repressão não for
reconhecida, tudo o que aconteceu nos porões da ditadura continua a ter a nossa
cumplicidade tácita. Não aceitar a diferença entre a violência clandestina de contestação
a um regime ilegítimo e a violência que arrasta toda a nação para os porões da
tortura é desonesto.
O
senador John McCain é um republicano “moderado”, o que, hoje, significa dizer
que ainda não sucumbiu à direita maluca do seu partido. Foi o único republicano
do Congresso americano a defender a publicação do relatório sobre a tortura
praticada pela CIA, que saiu quase ao mesmo tempo do relatório da nossa
Comissão da Verdade. McCain, que foi prisioneiro torturado no Vietnã, disse
simplesmente que uma nação precisa saber o que é feito em seu nome.
O
relatório da Comissão da Verdade, como o relatório sobre os métodos até então
secretos da CIA, é um informe à nação sobre o que foi feito em seu nome. Há
quem aplauda o que foi feito. Há até quem quer que volte a ser feito. São
pessoas que não se comovem com os mortos, nem de um lado, nem do outro.
Paciência.
Enquanto
perdurar o silêncio dos militares, perdura a aberração. E você eu não sei, mas
eu não quero mais ser cúmplice.