sábado, 31 de janeiro de 2015


01 de fevereiro de 2015 | N° 18060
MARTHA MEDEIROS

INVERSO

Ela me contou que morou durante toda a infância bem no centro da cidade, num apartamento pequeno de uma grande avenida, e cresceu escutando as conversas e gritos dos transeuntes lá embaixo, os motores dos ônibus, as portas do comércio abrindo e fechando, as brigas entre os camelôs, e nem à noite esse zumzumzum sossegava, pois havia os cinemas, as boates, os botecos, as prostitutas, um quartel com ininterrupto entra e sai de soldados e uma igreja ao lado cujo sino não conhecia descanso.

Se dava para dormir? Feito um anjo. Cada barulho específico da zona central era como se fosse um instrumento musical, e juntos eles compuseram sua cantiga de ninar. A tudo se acostuma.

Até que ela virou mulher, casou e foi morar num bairro tão distante do centro que era praticamente uma granja, e quem dizia que conseguia dormir? O silêncio, ali, era barulhento além da conta.

Um cachorro latindo ao longe, no meio da madrugada, bastava para lhe despertar. O farfalhar das folhas ao vento, numa árvore próxima à janela, a deixava em estado de alerta. Podia até ouvir uma estrela cadente se prestasse bem atenção. Como pegar no sono estando envolvida por tantas quietudes secretas, por tanta discrição?

Não foi bem com essas palavras que ela me contou sobre essa situação invertida, mas foi desse jeito que a escutei, com essa prosa e poesia, e também com algum espanto. Se barulho virou silêncio através do costume, e se silêncio virou barulho pelo mesmo motivo, então está tudo mesmo de cabeça para baixo?

O que mais era pra ser que não é?

A pessoa muito calada, com um sorriso fixo no rosto, pacienciosa com todos em volta, relaxada num corpo em repouso, estará mesmo calma? Pode ser que por baixo de sua pele o barulho seja infernal, a dor lateje, o coração grite e ela apenas esteja inerte para não chacoalhar ainda mais o desespero que leva dentro. Enquanto que aquela pessoa que dança, corre, abraça, ama, gargalha, viaja e se joga na vida é o quê? Budista.

A pessoa que anda sumida é uma ermitã ou será que está muito bem acompanhada por si mesma? E quem não desgruda de grupos será mesmo sociável ou carente ao extremo?

Acho que eu gostava mais da vida quando ela era como era, exata, e não como é agora, quando traz em si o seu contrário, nos obrigando a ler nas entrelinhas, entender os subentendidos, perceber o abstrato e desprezar o concreto – eu preferia o óbvio a tanta charada, eu preferia o cristalino ao lusco-fusco, eu gostava quando era mais fácil e as coisas e as pessoas cumpriam o prometido.

Quando foi isso? Nunca. Nunca foi como eu queria. Sempre foi o inverso.