21
de janeiro de 2015 | N° 18049
DAVID
COIMBRA
O lado bom do
bullying
Lá
no IAPI tinha uma guria que chamávamos de Zero Hora, por ser muito fofoqueira.
Outro, de tão magricela, virou o Languiça. E tinha também o Meia Longa, mas
esse não sei qual a razão do apelido, só sei que o chamávamos de Meia Longa
exatamente porque ele ficava furioso com isso.
Meia
Longa era o personagem de uma propaganda de caderneta de poupança. Aparecia um
coelho cantando: “Eu sou o Meia Longa, coelho muito sabido...”.
O
nosso Meia Longa morava no térreo. Era um baita dum negão, mais velho do que
nós e muito brabo. Nós íamos para a frente da janela dele e começávamos a
cantar: “Eeeeeeu sou o Meia Longa, coelho muito sabido...”. Em um segundo, o
negão voava porta afora, bufando e rosnando. Nós saíamos em debandada, às
gargalhadas.
O
Languiça e a Zero também não gostavam de ser chamados de Languiça e Zero. O
Languiça não partia para a briga porque era magrinho, mas ficava emburrado. E a
Zero nos xingava com palavrões que envergonhariam a Geral do Grêmio.
O
bom da brincadeira, evidentemente, era a irritação deles. Todos nós gozávamos
uns dos outros todo o tempo, mas uma sacanagem só “pegava” quando o alvo se
importava. Porque o objetivo de qualquer gozação é atingir o ego do outro. O
cara se leva a sério? Tanto melhor: a gozação vai puxá-lo cá para baixo.
Isso
não foi ruim. Ao contrário. O bullying, às vezes, exerce o saudável efeito da
derrota no esporte: faz suas vítimas mais resistentes, menos manhosas, ensina a
suportar com bom humor as contingências da vida. As tantas contingências da
vida.
O
sentimento de ofensa é egoico. Você se sente ofendido na medida do seu ego.
Grandes egos, grandes ofensas. As pessoas andam mais suscetíveis, hoje em dia,
porque seus egos estão mais estufados.
Estava
assistindo às manifestações do mundo islâmico contra o Charlie Hebdo. Não são
alguns poucos radicais. Não. São milhões dispostos a matar e morrer, matando e
morrendo. Por quê? Porque para eles foi feita uma ofensa contra DEUS. O que
pode ser mais importante do que Deus? E se eles se consideram o povo de Deus,
do verdadeiro Deus, se eles se sentem assim importantes, a dimensão que alcança
essa injúria é tão grande, que nela cabe toda a areia do Saara.
Os
islamitas têm sua causa, resumida numa frase: “Alá é o único Deus e Maomé é o
seu Profeta”. Uma causa pode dar sentido a uma vida, pode cevar um ego. Seu ego
pode ser alimentado pela sua causa, seja ela religiosa, humanitária ou ideológica,
seu ego pode ser alimentado pela sua noção de “honra” ou de “dignidade” ou de
“macheza” ou até de que você é vítima do mundo injusto. Combater o bom combate
justifica uma vida. Mas é preciso encontrar um inimigo. Aquele ali combate os
poderosos, as desigualdades, ele é o paladino dos oprimidos. Ele é o Bom. Ele
vê um preconceito e já saca da espada da Justiça, bradando: “Não passarão!”.
Quando
você se bate em nome da sua causa, bate-se em nome do seu ego. Por isso, tantas
pessoas chamando os outros de imbecis nas redes sociais, por isso as
depredações, as agressões, por isso tantos dispostos a matar e morrer. É coisa
muito séria essa gente que se leva a sério.