sábado, 31 de janeiro de 2015


31 de janeiro de 2015 | N° 18059
NÍLSON SOUZA

LEITURA PERTURBADORA

Já tive a oportunidade de ficar frente a frente com Mario Vargas Llosa e o máximo de que fui capaz, na presença do grande escritor, foi pedir-lhe um autógrafo para minha amiga Lucrécia, encomendado por seu marido, o saudoso colega Olyr Zavaschi.

Na ocasião, ouvi a exposição eloquente do peruano, feita para um grupo restrito de convidados, e fiquei de boca fechada para não tisnar com minha ignorância tamanha erudição. Já tinha lido alguns livros de sua autoria, todos leituras deliciosas, mas sequer me atrevi a mencioná-los no breve momento em que me dirigi a ele. Aliás, até mencionei dois títulos para justificar o pedido, pois Lucrécia é a personagem de Elogio da Madrasta e de sua continuação, Os Cadernos de Dom Rigoberto.

Vargas Llosa é um pensador genial. Independentemente de sua posição política liberal, para a qual as esquerdas torcem o nariz, e de sua estranha aventura eleitoral, quando disputou a presidência do Peru e perdeu para o autoritário Alberto Fujimori, que mandou esterilizar à força 200 mil mulheres indígenas, o talentoso escrevinhador de Arequipa continua produzindo num estilo direto perturbador. Acabei de ler seu ensaio A Civilização do Espetáculo – e ainda estou nocauteado.

O livro critica a vulgarização da cultura, especialmente da literatura e da arte, e de passagem alfineta o jornalismo sensacionalista, voltado prioritariamente para o divertimento. Mas o capítulo que mais me impressionou é o que analisa o sentido da religião e de Deus na vida das pessoas, mesmo na chamada era pós-moderna.

Ao contrário do que se poderia esperar de um intelectual consciente dos danos causados pelo fanatismo religioso à humanidade, que não deixa de evidenciar na sua análise, Vargas Llosa não se alinha ao ateísmo militante do cientista britânico Richard Dawkins, autor de Deus, um Delírio.

Pelo contrário, sua abordagem passa ao largo do dilema primordial do ser humano, se Deus existe ou não. O que ele sustenta, com racionalismo perturbador, é que as igrejas e as religiões, incluindo-se aí a crença num ser supremo, são indispensáveis para manter a humanidade voltada para o bem, para evitar a barbárie e a luta sangrenta pelo poder.


Se há só esta vida, e nada mais depois dela, por que não deixar emergir nossos piores instintos? – pergunta Vargas Llosa e responde com magistral lucidez: “Os homens se empenham em crer em Deus porque não confiam em si mesmos”.