18
de janeiro de 2015 | N° 18046
ISMAEL
CANEPPELE
Tia Rita
O
mundo vive uma explosão no consumo da Ritalina. Ou metilfenidato. Tia Rita,
para os entendidos. Só entre 2002 e 2006,
a produção cresceu 400%. É o estimulante mais consumido
no mundo. O Brasil é o segundo maior consumidor, e não para de crescer. Se em
2003 consumimos 94kg, em 2002 foram 875. Já atingimos a marca da uma tonelada.
A indústria fatura alto, receitando a medicação, principalmente, para crianças.
Tem
sempre algum conhecido recebendo a visita da tia Rita. Alguns deslumbrados com
a presença, outros, fazendo o possível para se livrar dela. A tia opera
milagres nos problemas de obesidade das mulheres. É melhor que drenagem
linfática. Com a ansiedade controlada, a vontade de comer passa. Os homens ficam
focados. Produzem mais no trabalho. Deixam de ser estabanados em casa. As
crianças, antes dispersas, como convém à idade, agora obedecem. Tia Rita,
quando chega, dá dor de barriga. Mas depois acostuma.
Tia
Rita vai ficando. É a visita que sempre fica tempo demais. Ocupa mais espaço do
que deveria. Arranca a intimidade da casa. A tal da solidão. Tia Rita está na
cozinha, sentada na mesa, cuidando de tudo. Deitada no tapete da sala,
prestando atenção aos discos que ninguém nunca escutou. Ou dividindo o mesmo
colchão.
O
metilfenidato pode causar reações adversas no sistema nervoso central. Psicose,
alucinações, convulsões, sonolência, ansiedade e, até mesmo, impulso suicida. A
Ritalina também causa o “efeito zumbi”. Droga da obediência, cai como uma luva
para aqueles pais que não sabem como fazer o pequeno prestar atenção na escola,
na aula de música, no cursinho de inglês, nas artes e na luta. Tudo em um só
dia, que é para o pequeno ficar bastante ocupado. Sufocados em atividades,
acabam perdendo, logo na primeira infância, a possibilidade do nada. O tal do
ócio. Filho fazendo nada é, ao lado d’água paulista, o suprassumo do alto luxo
contemporâneo.
“Por
que legar à mãe a função de cuidadora do ninho? E se ela não quiser. Se ela
quiser se separar, deixar os filhos com o pai, e experimentar uma vida em que a
solidão seria o mais importante? Só ao homem é legítimo estar só. Não às mães”,
reclama uma amiga sem saber o que fazer com a família que, subitamente, passou
a fazer parte dela. O pequeno tem cinco. Foi insuportável até os quatro. Passou
a receber visitas diárias da tia Rita. Tornou-se um anjo. Nem mesmo foi preciso
educá-lo. Não demorou muito, e minha amiga também ficou a fim de conhecer a tia
do filho. Engoliu o primeiro comprimido e foi apresentada ao maravilhoso mundo
do “então era isso!?”.
O
médico a considerou apta a receber as visitas e deu no que deu. Mãe e filho
passam longas noites juntos. Ele jogando videogame com a tia Rita. Ela
cozinhando para ninguém. Antes de dormir, joga tudo no lixo. Perdeu a fome. Ela
e a tia Rita estão de dieta. Uma ajuda a outra. Depois, mãe e filho dormem
juntos na mesma cama. O conforto é um presente do comprimido.
Segundo
a ONU, a produção de Ritalina no mundo gira em torno de 38 toneladas. Do total,
34,6 são produzidas pelos Estados Unidos, que consomem 86,2% da sua produção. A
Polícia Federal norte-americana registrou um aumento no número de adolescentes
e adultos jovens que fazem uso sem prescrição. Aproximadamente 3.601
atendimentos dos pronto-socorros em 2010 estavam relacionados ao uso
indiscriminado do metilfenidato, e 186 mortes ligadas ao uso do medicamento, só
nos Estados Unidos. Dr. Luiz Alberto Chaves de Oliveira, coordenador de
Políticas Sobre Drogas no Estado de São Paulo, diz que “de 30% a 50% dos jovens
em tratamento por dependência química relataram já ter abusado de
metilfenidato, pois acreditam que os efeitos são semelhantes ao da cocaína,
também estimulante”.
Apesar
de haver discordância sobre a semelhança entre Ritalina e cocaína, o abuso da
tia Rita tem sido documentado entre dependentes químicos americanos, que chegam
a dissolver comprimidos em água para injetar nas veias. Quando injetados, os
componentes bloqueiam vasos sanguíneos, causando sérios danos aos pulmões e à
retina. Pesquisa da FDA (Food and Drugs Administration), órgão de vigilância
sanitária dos EUA, e do NMH (National Institute of Mental Health), feita em
2009, revela que o risco de morte súbita para adolescentes que tomaram Ritalina
é de 10 a 14 vezes
maior do que para aqueles que nunca foram medicados.
Tia
Rita é importantíssima para quem precisa. Mas nem todo o mundo pode morar com
ela.