terça-feira, 20 de janeiro de 2015


20 de janeiro de 2015 | N° 18048
DAVID COIMBRA

O capital no século 21

Durante as duas primeiras semanas do ano, às vezes com flocos de neve flutuando lá fora, sempre com temperaturas abaixo de zero, ora lubrificando a garganta com um tinto do Napa Valley, ora com um café preto da Mogiana Paulista, durante esse tempo e sob esse clima, li o best-seller de Thomas Piketty, O Capital no Século XXI.

Não é um texto sofisticado, talvez não seja nem um bom texto, mas é um texto que precisa ser lido, e o fiz já com certo atraso.

Piketty sonha ser comunista. Queria, no mínimo, ser socialista. Mas é racional demais para ser uma coisa ou outra. A folhas tantas, ele se deixa levar por devaneios, chega a flertar até com o regime totalitário chinês, mas logo os fatos crus arrastam-no de volta à realidade e Piketty, não sem um suspiro contrafeito, aceita a humanidade imperfeita do capitalismo, como imperfeitas são todas as humanidades.

Assim, Piketty passa o livro todo, um alentado livro, buscando solução para as desigualdades geradas pelo mercado, que acabam cristalizadas na sociedade. Faz uma análise profunda dos sistemas de dois países: da sua França natal, onde ele ainda mora, e dos Estados Unidos, onde morou – Piketty viveu e estudou aqui, em Boston. Apesar de ele dizer e repetir, frisar e sublinhar que examinou criteriosamente 20 países, a fundo, a fundo examinou só esses dois. Nos demais, dá uma passada. Na América do Sul, nem isso. O Brasil? Que Brasil?

Esse é um dos defeitos do livro de Piketty: ele tem olhos apenas para os problemas do capitalismo dos países desenvolvidos. Curiosamente, esse foi também um dos defeitos do primeiro O Capital: Karl Marx fez seus diagnósticos e prognósticos com base na Inglaterra e na Alemanha, perfeitos correspondentes, para Piketty, a Estados Unidos e França. Marx jamais imaginaria que o modelo que previu seria implantado na atrasadíssima Rússia.

Num mundo ideal, a solução de Piketty seria ideal – a taxação internacional das grandes fortunas geradas pelo capital. Mas ele reconhece que o mundo não é ideal e deixa suas propostas esperançosamente bailando no ar, como bailam os flocos de neve no céu da Nova Inglaterra.

De certa forma, Piketty atingiu seu objetivo e, com sua utopia internacionalista, transformou-se num Karl Marx do século 21.


O epitáfio de Marx está gravado na pedra abaixo de seu busto, no cemitério de Highgate, em Londres: “Workers of all lands, unite”. “Trabalhadores do mundo, uni-vos.” Piketty talvez mande que escrevam no seu: “Tax collectors of all lands, unite”. “Cobradores de impostos do mundo, uni-vos!”