segunda-feira, 19 de janeiro de 2015


19 de janeiro de 2015 | N° 18047
MOISÉS MENDES

A execução

Tem gente que pode ter saído direto das ruas, na passeata iluminista pelos franceses da Charlie Hebdo, pela liberdade e pela vida, e entrado na internet para aderir à marcha medieval pela execução do brasileiro Marco Archer Moreira na Indonésia.

Disseram – e eu li nas redes sociais – que ele sabia que iria morrer ao levar drogas para um país tão rigoroso com o tráfico. Se sabia, que morresse. Esses pregam que, se as leis mandam matar, que assim seja. Leis são leis.

Também li a explicação de um professor de Direito Penal de São Paulo. Em tom de indignação, disse que Marco foi vítima do exercício legalizado da barbárie pelo Estado.

É como se nós, aqui do Ocidente das nossas muitas Dinamarcas, pudéssemos falar de barbaridades institucionalizadas do outro lado de um mundo que consideramos primitivo.

Mata ou não mata é um confronto interminável. Estão entre seus participantes os que defendem em voz alta a legitimidade das barbáries cometidas em nome do Estado em Guantánamo.

Eu prefiro pensar no gesto mais grandioso desse caso. Penso na tia do condenado, que saiu de Manaus, dias antes da execução, com um vidro de doce de leite para o sobrinho.

Maria de Lourdes Archer Pinto era, a distância, a protetora de Marco por afinidade afetiva. Na parada em Portugal, comprou bacalhau.

Pouco antes de morrer, Marco pode então ter comido bacalhau e doce de leite de Manaus. Pode ter raspado o prato de doce lentamente, até apagar todos os vestígios do que havia ali.

E depois de despedir-se da tia pode ter espichado a espera por um milagre. Como o que aconteceu nas execuções a tiros em que Flávio Tavares morreu duas vezes no Uruguai.

Flávio, presa da ditadura, morreu e ressuscitou depois de dois fuzilamentos em 1977. Sobreviveu para escrever o monumental Memórias do Esquecimento. Claro que não comparo os personagens, não há como compará-los. Apenas reflito sobre o horror de uma execução, no Uruguai da ditadura, na Indonésia ou nos Estados Unidos.

É provável que Marco tenha morrido com o gosto do doce de leite na boca, pensando no milagre que o levaria depois a muitos outros potes.


Algumas tias (mas só as tias, não os tios) sabem o que fazer nas mais cruéis circunstâncias, e até momentos antes de uma execução. Tive pelo menos cinco tias que fariam isso por mim e eu não fiz quase nada por elas.