19
de janeiro de 2015 | N° 18047
MOISÉS
MENDES
A execução
Tem
gente que pode ter saído direto das ruas, na passeata iluminista pelos
franceses da Charlie Hebdo, pela liberdade e pela vida, e entrado na internet
para aderir à marcha medieval pela execução do brasileiro Marco Archer Moreira
na Indonésia.
Disseram
– e eu li nas redes sociais – que ele sabia que iria morrer ao levar drogas
para um país tão rigoroso com o tráfico. Se sabia, que morresse. Esses pregam
que, se as leis mandam matar, que assim seja. Leis são leis.
Também
li a explicação de um professor de Direito Penal de São Paulo. Em tom de
indignação, disse que Marco foi vítima do exercício legalizado da barbárie pelo
Estado.
É
como se nós, aqui do Ocidente das nossas muitas Dinamarcas, pudéssemos falar de
barbaridades institucionalizadas do outro lado de um mundo que consideramos
primitivo.
Mata
ou não mata é um confronto interminável. Estão entre seus participantes os que
defendem em voz alta a legitimidade das barbáries cometidas em nome do Estado
em Guantánamo.
Eu
prefiro pensar no gesto mais grandioso desse caso. Penso na tia do condenado,
que saiu de Manaus, dias antes da execução, com um vidro de doce de leite para
o sobrinho.
Maria
de Lourdes Archer Pinto era, a distância, a protetora de Marco por afinidade
afetiva. Na parada em Portugal, comprou bacalhau.
Pouco
antes de morrer, Marco pode então ter comido bacalhau e doce de leite de
Manaus. Pode ter raspado o prato de doce lentamente, até apagar todos os
vestígios do que havia ali.
E
depois de despedir-se da tia pode ter espichado a espera por um milagre. Como o
que aconteceu nas execuções a tiros em que Flávio Tavares morreu duas vezes no
Uruguai.
Flávio,
presa da ditadura, morreu e ressuscitou depois de dois fuzilamentos em 1977.
Sobreviveu para escrever o monumental Memórias do Esquecimento. Claro que não
comparo os personagens, não há como compará-los. Apenas reflito sobre o horror
de uma execução, no Uruguai da ditadura, na Indonésia ou nos Estados Unidos.
É
provável que Marco tenha morrido com o gosto do doce de leite na boca, pensando
no milagre que o levaria depois a muitos outros potes.
Algumas
tias (mas só as tias, não os tios) sabem o que fazer nas mais cruéis
circunstâncias, e até momentos antes de uma execução. Tive pelo menos cinco
tias que fariam isso por mim e eu não fiz quase nada por elas.