18
de janeiro de 2015 | N° 18046
ROBERTO
DAMATTA
Sou Charlie e
antropólogo
A
eliminação do Charlie Hebdo por dois jovens radicais islâmicos em paralelo ao
ataque com reféns a um mercado judeu por outro extremista confirma o inesperado
– esse traço com o qual a vida se faz e que marca todas as vidas.
O
evento abominável levou-me à Paris idealizada de onde recebi um cartão-postal
com os desejos de um feliz 2015! Pensei no meu amigo vivendo o charme
parisiense ser englobado pelo terrorismo, que suspende a plausibilidade das
rotinas, e percebi uma mudança no jogo contínuo e necessário das nossas
identidades. A Paris simbolizada pela racionalidade foi roubada pelos radicais
islâmicos, que não aceitam a ética da liberdade conquistada e declarada como
universal justamente na França.
A
tragédia engendrou a oposição entre ser civilizado (Charlie) e francês ou ser
muçulmano (radical). A configuração do ser humano em papéis sociais a serem
desempenhados livremente num mundo que se supõe aberto e progressista, viu-se
reduzida por uma clássica dualidade. Agora, todos somos franceses (vítimas e
aparentemente cristãos) ou radicais islâmicos. Eis o triunfo dos extremismos,
que têm resposta para tudo e só admitem a verdade do seu credo.
Somem
as escolhas quando a liberdade é assassinada em nome de uma guerra religiosa.
Ela também demonstra que o maior medo dos radicais não é um outro radicalismo,
mas o riso e o humor que carnavaliza e sublima.
Vi o
terremoto cosmológico promovido pela imobilidade irreversível da morte. Algo
aterrorizante porque um lado da questão foi violentamente eliminado, como
mostra a literatura mais do que as “ciências sociais”, num mundo construído
para esquecê-la (e superá-la pela ciência). Eis, suponho, um dos focos da
vertigem: a recusa em escutar num mundo interligado por próteses que
incessantemente prometem resolver problemas. Esquecidos de que informação exige
a abertura para o alternativo e um esforço de compreensão, vivemos a
insegurança e a revolta.
Sou
Charlie porque o massacre esfrega na minha cara o paradoxo da imobilidade das
crenças – essa dimensão básica dos radicalismos e da própria humanidade –, num
mundo marcado por muitas línguas, crenças e conjunturas que as desafiam.
Liberal, aceito a liberdade de ofender com palavras, não com tiros.
Mas
o que é, afinal, esse esplêndido Ocidente se não a prova do movimento corajoso
das crenças para as ideologias políticas e científicas libertadoras dos credos
religiosos, mas criadoras de déspotas, guerras mundiais, holocaustos e
racismos? Não se pode negar o avião ou um antibiótico, mas não se pode esquecer
que só o descrente acredita que o crente acredita em Deus; pois, para ele, sua
crença é conhecimento concreto.
Mas
não seria uma outra crença e um outro radicalismo imaginar uma humanidade sem
crenças? Uma pessoa sem uma língua ou valores seria um ser inclassificável. Ela
denegaria a nossa humanidade que, conforme acreditamos, tem direito à liberdade
de ser radicalmente descrente e capaz de todas as heresias.
Sendo
Charlie, mas sem deixar de ser antropólogo, lembro-me de Lévi-Strauss, quando
ele ressaltava o etnocentrismo. O fato de que nossas línguas e crenças nos
constituem como centros do mundo. Os ameríndios viram os espanhóis como deuses
e estes – Conquistadores! – duvidaram se aquelas criaturas tinham alma e seriam
seres humanos de verdade.
Vejam
a ironia: a era das grandes descobertas marítimas – os séculos 15 e 16 –, com
consequente catequese e destruição das civilizações e culturas do chamado Novo
Mundo, coincide significativamente com as guerras religiosas na Europa, as
quais – por seu turno –, freudianamente, repetem as guerras santas e jihadis
entre cruzados e infiéis islâmicos, iniciadas no final do ano mil. Seria um
exagero dizer que a noite do massacre de São Bartolomeu (24 de agosto de 1572),
quando foram mortos 2 mil protestantes na contagem católica e 70 mil na
contagem protestante, foi o evento fundador do fundamentalismo ocidental. Dele,
foram paridos outros radicalismos que não admitem meio termo, indecisão, mais
ou menos ou incomensurabilidades como ser materialista e ter Exu como padrinho.
Ser um “respeitador de todas as crenças”, como dizia mamãe sem saber, mas
sabendo, que a incerteza (que suspende uma identidade como algo exclusivo e
arrebatador), é a matriz da moderação.
Mamãe
sorria das minhas convicções radicais. Para ela, tudo tinha conserto.
Hoje,
velho e suspeitoso por oficio do óbvio ululante, continuo um crente na
liberdade como um valor e no valor da liberdade. Mas estou profundamente
decepcionado. Minha esperança é que o bom senso vença a fúria radical.