sábado, 31 de maio de 2014


01 de junho de 2014 | N° 17815
ANTONIO PRATA

Fio dental

Fiquei na dúvida se começava esta crônica com “O ser humano não aprende com os próprios erros” ou “Os pequenos incômodos, não as grandes tragédias, é que fazem da vida um inferno”. São dois começos tonitruantes, como convém a um tema tão profundo quanto o anunciado no título.

A primeira afirmação tem a vantagem de exprimir uma verdade, mas é esse também o seu defeito: de tão verdadeira soa como uma dessas platitudes escritas em para-choque de caminhão. Já a segunda frase é duvidosa, mas traz ao menos a graça e o suspense da provocação irresponsável: será um calo pior do que um terremoto? Não creio. Um cronista, porém, precisa fazer suas escolhas: entre a fria verdade e uma mentira bem refogadinha, jamais deve titubear, de modo que...

Os pequenos incômodos, não as grandes tragédias, é que fazem da vida um inferno. Veja o caso do fio dental que arrebenta. Tenho 30 dentes na boca, o que resulta em 28 vãos, dos quais 27 não me causam problema algum: o fio entra tranquilamente, desliza de cá pra lá, de lá pra cá e leva embora os tributos indevidos que me recuso a pagar às cáries, ao tártaro e à placa bacteriana. Há um vãozinho, contudo, embaixo e à esquerda, em que os dentes estão próximos demais.

Em meus 37 anos sobre a Terra, encontrei uma única marca de fio dental capaz de penetrar essas encostas mortais e sair incólume. Todas as outras, das diáfanas fitas mentoladas aos robustos cabos oferecidos em banheiros de churrascaria, arrebentam no meio do caminho. Se eles só arrebentassem, tudo bem: a encrenca é que abandonam ali, na zona do agrião (literalmente, dependendo do cardápio) parte de sua matéria, piorando a situação.

Pois bem: eu sei que só uma marca dá conta do recado, que todas as outras se rompem, mas às vezes meu fio dental acaba, ou vou viajar e esqueço de botá-lo na mala – e é aí que chegamos ao para-choque de caminhão. O ser humano, não aprendendo com os próprios erros, tenta se enganar, pega o fio dental da mulher e pensa assim: “É só ir com jeitinho, só ir no ângulo certo que vai rolar”. Pronto: o fio entra, rasga e parece que tem um caroço de goiaba empurrando um dente pra cada lado.

O ser humano não só não aprende com o próprio erro, como insiste. Ele inventou a clava e depois a flecha e depois a espingarda e depois a bomba atômica e depois de arrebentar o fio pela primeira vez, o que ele faz? Tenta de novo. E arrebenta de novo. Ele desiste? Sai pra comprar o fio certo? Não: ele resolve enrolar o fio dental, fazer uma espécie de trancinha que, com sua dupla resistência e a fé em Deus, retirará os resíduos alimentares e os fiapos dos companheiros tombados em combate.

A trancinha rasga, claro. Os dentes pulsam, como se houvesse um caroço de azeitona entre eles. É agora que o ser humano desiste? Não. O ser humano vai seguir tentando, com fios triplos, quádruplos, com linhas de costura, de pesca, cabos de aço, de alta tensão, com o Trópico de Capricórnio e a Via Láctea, até que o cansaço ou a humilhação o atirem na cama.


Pensando bem, acho que me enganei ao duvidar que os pequenos incômodos, não as grandes tragédias, é que tornam a vida um inferno – o que me força a admitir que o ser humano, às vezes, aprende com os próprios erros. (Devia ter começado com “Veja o caso do fio dental que arrebenta.”).