25
de maio de 2014 | N° 17807
ANTONIO
PRATA*
Um escritor! Um
escritor!
*ANTONIO
PRATA É ESCRITOR, AUTOR DE MEIO INTELECTUAL, MEIO DE ESQUERDA (2010) E NU, DE
BOTAS (2013). ESCREVE SEMANALMENTE NESTE CADERNO
Com
o jornal numa mão e um guaraná diet na outra eu caminhava pelas ruas de Kiev,
desviando de barricadas e coquetéis Molotov, quando a voz no sistema de som me
trouxe de volta à poltrona 11C
do Boeing 737: “Atenção, senhores passageiros, caso haja um médico a bordo,
favor se apresentar a um de nossos comissários”.
Foi
aquele discreto alvoroço: todos cochichando, olhando em volta, procurando o
doente e torcendo por um doutor, até que, do fundo da aeronave, despontou o
nosso herói. Vinha com passos firmes – grisalho, como convém –, a vaidade
disfarçada num leve enfado, como um Clark Kent que, naquele momento, estivesse
menos interessado em demonstrar os superpoderes do que em comer seus amendoins.
Um
comissário o encontrou no meio do corredor e o levou, apressado, até uma
senhora gorducha, que segurava a cabeça e hiperventilava, na primeira fileira
do avião. O médico se agachou, tomou o pulso, auscultou peito e costas,
conversou baixinho com ela, depois falou com a aeromoça. Trouxeram uma caixa de
metal, ele deu um comprimido à mulher e, nem dez minutos mais tarde, voltou
pros seus amendoins, sob os olhares admirados de todos.
Ou
de quase todos, pois a minha admiração, devo admitir, foi rapidamente
fagocitada pela inveja. Ora, quando a medicina nasceu, com Hipócrates, a
história de Gilgamesh já circulava pelo mundo havia mais de dois milênios:
desde tempos imemoriais, enquanto o corpo seguia ao Deus dará, a alma era
tratada por mitos, versos, fábulas – e, no entanto... No entanto, caros
leitores, quem aí já ouviu uma aeromoça pedir, ansiosa: “Atenção, senhores
passageiros, caso haja um escritor a bordo, favor se apresentar a um de nossos
comissários”?
Eu
não me abalaria. Fecharia o jornal, sem afobação, poria uma Bic e um guardanapo
no bolso, iria até a senhora gorducha e me agacharia ao seu lado.
Conversaríamos baixinho. Ela me confessaria, quem sabe, estar prestes a
reencontrar o filho, depois de dez anos brigados: queria falar alguma coisa
bonita pra ele, mas não era boa com as palavras. Eu faria uma rápida anamnese:
perguntaria os motivos da briga, se o filho estava mais pra Proust ou pra UFC,
levantaria recordações prazerosas da relação e, antes de tocarmos o solo,
entregaria à mulher três parágrafos capazes de verter lágrimas até da estátua
do Borba Gato.
De
volta ao meu lugar, passageiros me cumprimentariam e compartilhariam histórias
semelhantes. Uma jovem mãe me contaria do primo poeta que, num restaurante, ao
ouvir os apelos do garçom – “um escritor, pelo amor de Deus, um escritor!” –,
tinha sido levado até um rapaz apaixonado e conseguido escrever seu pedido de
casamento no cartão de um buquê antes que a futura noiva voltasse do banheiro.
Um senhor comentaria o caso muito conhecido do romancista que, após as súplicas
de mil turistas, fora capaz de convencer 200 tripulantes de um cruzeiro a
abandonar o gerúndio.
Eu
sorriria, de leve. Diria, “Pois é, se você escolheu essa profissão, tem que
estar preparado pras emergências”, então recusaria, educadamente, o segundo
saquinho de amendoins que a aeromoça me ofereceria e voltaria, como se nada
tivesse acontecido, para as bombas da Crimeia, com meu copo de guaraná.