terça-feira, 20 de maio de 2014



20 de maio de 2014 | N° 17802
LUÍS AUGUSTO FISCHER

QORPO VIVO

Não passa um semestre, há mais de 20 anos, sem que eu leia algo que me leve de volta a Qorpo-Santo. Aí eu abro um arquivo no computador e anoto, para depois, quem sabe, escrever sobre. Já me prometi tentar escrever um estudo mais detido sobre sua figura, para tentar recontar documentalmente sua vida e obra, coisa que na ficção nosso atual secretário de Cultura, Luiz Antonio de Assis Brasil, já fez, no romance Cães da Província.

Para o leitor que está chegando agora, trata-se de um escritor gaúcho, José Joaquim de Campos Leão (1829 – 1883), que usava o curioso apelido em função de uma iluminação que dizia ter tido, segundo a qual ele devia manter o corpo santo, sem a conspurcação do sexo.

Amalucado, vítima de crises mentais sem diagnóstico claro, foi interditado judicialmente, mas depois recuperou a autonomia civil e publicou tudo que tinha escrito ao longo da vida. A essa obra reunida deu o nome nada modesto de Ensiqlopédia – mais uma vez usando aquele “q” no lugar do convencional “c”, marca de outra de suas ideias, uma reforma ortográfica igualmente maluca.

Agora mesmo voltei a ele, por ter manuseado livros e anotações deixadas pelo saudoso Aníbal Damasceno Ferreira, falecido ano passado, seu descobridor e entusiasta. Poucos dias atrás, a Laura Backes me convidou para conversar sobre ele, tendo em vista nova montagem de seu teatro.

E abri meu arquivo digital para retomar coisas, quando me deparei com anotações sobre um belo ensaio publicado na revista Serrote, 2, julho de 2009, da neurologista Alice W. Flaherty, chamado Hipergrafia, o Incurável Mal da Escrita. Ali são evocados casos de vários escritores enquadráveis no caso, entre os quais Dostoiévski e Flaubert, Poe e Lewis Carroll, aos quais nós podemos acrescentar não apenas nosso Qorpo-Santo, de obra tão estranha, mas Machado de Assis e Jorge Luis Borges, creio.


O Aníbal tinha uma imagem decerto aprendida com um amigo físico: Qorpo-Santo foi como um cometa; e um cometa, dizia, vale menos por si mesmo, em sua trajetória fugaz, e mais por permitir observações de contraste com outros corpos celestes que, sem o cometa, não apareceriam tão nitidamente.