ANÉLIO
BARRETO
Roubaram nossa
Copa
O
sumiço e o sumiço da taça Jules Rimet
Resumo
Troféu criado para premiar vencedores da Copa do Mundo, desde a edição inicial,
em 1930, a taça
Jules Rimet foi roubada duas vezes. Na primeira, em 1966, na Inglaterra, foi
encontrada por um cão chamado Pickles; mas em 1983, surrupiada da sede da CBF,
no Rio, sumiu de vez, supostamente derretida por um argentino.
Em
um bar do Santo Cristo, bairro portuário de classe média no Rio, o Peralta e o
Broa estavam animados em um joguinho de baralho. Talvez não muito, porque,
durante o jogo, Peralta convidou o Broa para um roubo. Broa era chegado nos
bens do alheio. Mas não se tratava de um roubo comum: seria roubada a taça
Jules Rimet, a Copa do Mundo, que o Brasil havia conquistado definitivamente em
1970, no Mundial do México.
Broa,
ou melhor, Antônio Setta, pensou um pouco e declinou. Como todo ex-presidiário,
ele tinha como amigos não apenas bandidos mas também policiais. Entre os
bandidos estava o Peralta, ou Sérgio Pereira Ayres, que conheceu nas peladas do
Clube do Omar, na Vila Militar do Rio.
Broa
disse não à proposta. "Em primeiro lugar, porque sou brasileiro, gosto de
futebol e não cometeria uma desonra dessa com a torcida. E também por motivos
sentimentais. No dia em que o Brasil conquistou o tricampeonato, meu irmão,
Giacomo, morreu do coração, emocionado com a vitória."
A
conversa ficou por aí, ou não ficou, porque Broa passou uma borracha no
assunto. Eis que, dias mais tarde, em 20 de dezembro de 1983, ele topa com esta
notícia num jornal:
"Três
taças de ouro, entre as quais a Jules Rimet, foram roubadas ontem à noite, por
dois ladrões, do gabinete do Presidente da Confederação Brasileira de Futebol,
Giulite Coutinho, no nono andar do edifício João Havelange, na rua da
Alfândega, 70."
A
reportagem complementava: "Os dois ladrões entraram no prédio às 21h de
ontem, rendendo o vigia e o amarrando e vedando com tiras de esparadrapo. João
Batista Maia, 55 anos, o vigia, foi ameaçado de morte caso tentasse dificultar
o roubo".
O
Clube do Omar, onde o Broa havia conhecido Peralta, era frequentado também por
militares --por se localizar perto do quartel do Primeiro Batalhão e do
Regimento Caetano de Farias. Broa contou para uns tiras do clube o convite de
Sérgio Peralta, mas a princípio ninguém fez muito caso.
Os
"sherlocks" da polícia iam tirando suas conclusões. Eles se faziam
duas perguntas: por que o vigia não tinha marcas de ataduras nos pulsos? E por
que não ficaram pelos de suas sobrancelhas no esparadrapo que cobria seus
olhos?
Resposta:
o vigia era suspeito. E mais ainda: sua filha, Sílvia Regina de Almeida Maia,
era suspeita também, porque justamente na hora do roubo havia chegado à CBF
procurando pelo pai. Ela gritou e gritou por ele, mas o vigia estava amarrado e
preso, muito bem amarrado e preso.
ROUBO
Nº 1 A Jules Rimet
representava Niké (também grafado Nique ou Nike), a deusa grega da vitória, com
asas estilizadas, e era feita de ouro. Tinha os braços erguidos, segurando uma
copa de oito faces, plantada em uma base de mármore com placas, para que fossem
gravados ali os nomes de seus conquistadores. Media 35 centímetros de altura e
pesava cerca de 3,8 quilos (com ao menos 1,8 quilos de ouro, o que equivaleria,
em valores de hoje, a R$ 170 mil).
A
ideia de criá-la surgiu no Congresso da Fifa, em 28 de maio de 1928, como
recompensa pela conquista da primeira Copa do Mundo, dali a dois anos.
O
então presidente da Federação, Jules Rimet, contratou para sua confecção o
artesão francês Abel Lafleur (1875-1953), que trabalhava como assistente no
Museu de Belas Artes de Rodez. Chamou-se inicialmente Copa do Mundo, até que um
novo congresso da entidade, em 1946, decidiu que ela homenagearia seu
idealizador.
Quando
sumiu, a Jules Rimet não era novata em situações inesperadas. Afirma-se que,
durante a Segunda Guerra Mundial, para impedir que fosse confiscada pelos
alemães, o então vice-presidente da Fifa, o italiano Ottorino Barassi, a teria
escondido em uma caixa de sapatos, embaixo de sua cama.
Em
1963, uma comédia brasileira chegou a ficcionalizar o desaparecimento do
troféu. "O Homem que Roubou a Copa do Mundo", de Victor Lima, era
protagonizada por Ronald Golias e por Grande Otelo, que faziam os detetives
encarregados de recuperar a Jules Rimet.
A
copa viria a ser subtraída, de fato, não muito tempo depois. No dia 20 de março
de 1966, ela estava em Londres, no Central Hall de Westminster, grande edifício
que congrega uma igreja metodista e um centro de eventos, como atração da
mostra "Esportes com Selos", da feira filatélica Stampex.
Estava
posicionada numa vitrine logo na entrada sobre uma plaqueta na qual se lia:
"Este magnífico troféu foi bondosamente cedido pelos organizadores da Copa
Mundial". Como se sabe, a Copa do Mundo daquele ano aconteceria na
Inglaterra, cuja seleção viria a ganhar, com um gol pouco ortodoxo
(bondosamente cedido), a final do campeonato.
A
reconstituição policial do roubo concluiu que alguém entrara no prédio
normalmente --afinal era um domingo, dia de culto--, observara o serviço
religioso por alguns instantes, caminhara em direção ao corredor em que ficavam
os telefones públicos, junto à entrada dos fundos da exposição de selos, e
"trabalhara" na maçaneta.
Em
pouco menos de cinco minutos, os parafusos que prendiam a placa de metal foram
removidos, a trava cedeu; o invasor empurrou cuidadosamente a porta e viu-se só
na sala vazia. Ali estava a taça. Com o golpe de uma barra de ferro foi
quebrado o cadeado e aberta a vitrine sem danificá-la. Quando esse alguém se
retirou, com o troféu sob um dos braços, o órgão dos metodistas ainda soava.
Os
detetives da Scotland Yard começaram a bater cabeça.
Seis
dias depois, surgiria o verdadeiro herói da história, firme não em duas pernas,
mas em quatro. Um senhor, David Corbett, passeava com seu cachorrinho vira-lata
Pickles em uma praça do sul da capital inglesa quando este, farejando um
arbusto, localizou um pacote enrolado em jornais e, dentro dele, a Jules Rimet.
Pickles
não ficou sem recompensa. Como prêmio por sua heroica descoberta, ele ganhou,
além da fama, suas refeições pelo resto da vida, por parte de um fabricante de
alimentos para cães. Para desespero dos policiais britânicos, foi dito que o
cão deveria ser nomeado investigador.
ROUBO
Nº 2 Depois de afastar o vigia e sua filha do rol de suspeitos, os policiais
cariocas decidiram que talvez fosse mais aconselhável levar a sério o que dizia
o Broa. E, logo de início, três homens foram grampeados:
O
próprio Peralta, ex-bancário, representante do Clube Atlético Mineiro no Rio
(dado que o Atlético negou veementemente), com livre trânsito na CBF, mentor
intelectual do assalto (teria feito o mapa do prédio, permitindo a pronta
localização da taça); Francisco José Rocha Rivera, conhecido como Chico
Barbudo, ex-policial que bandeara para o outro lado; e Juan Carlos Hernandes,
argentino e negociante de ouro.
Teria
havido ainda outro cúmplice, acrescentariam os tiras, introduzindo o nome de
José Luiz Vieira da Silva, o Luiz Bigode, decorador e negociante autônomo de
ouro, suposto intermediário entre Peralta e Hernandes. Detalhe pitoresco:
Vieira da Silva teria sido encarregado de descontar um cheque recebido do
argentino para pagar os ladrões e fugiu com o dinheiro.
A
taça, disse a Polícia Federal aos repórteres, terminara vendida e derretida no
dia seguinte ao roubo. E, se a derreteram, tiveram de fazê-lo aos pedaços,
porque o maquinário de Hernandes só conseguia derreter 250 gramas por vez.
Os
quatro negaram a história, mas o fato é que a Jules Rimet jamais viria a ser
encontrada.
Surgiram,
então, bastidores dignos dos Trapalhões. A verdadeira Jules Rimet ficava em uma
vitrine à prova de balas. Mas a estrutura era presa à parede por uma moldura de
madeira, que um simples pé de cabra poderia deslocar --o que veio a acontecer.
Enquanto isso, uma réplica dela --a réplica, repita-se-- estava guardada em um
cofre inexpugnável.
Dos
quatro acusados, Peralta (o mentor) foi sentenciado a cinco anos de prisão,
José Luiz Vieira da Silva e José Rocha Rivera (os executores), a seis anos cada
um, e Juan Carlos Hernandes (o suposto receptor), a três.
Os
quatro sumiram depois de conhecidas as sentenças. Peralta, preso apenas em
1994, ganharia liberdade condicional quatro anos mais tarde. Rivera seria
assassinado em 1989, em um bar no bairro de Santo Cristo, com cinco tiros. José
Luiz Vieira da Silva, o Bigode, seria capturado em 1995 e passaria ao regime
aberto três anos depois. Hernandes acabou preso 15 anos depois, em São Paulo
--mas por tráfico de drogas. O Broa, que não tinha entrado no esquema, morreu
em um suspeito acidente de automóvel.
Diversos
detalhes do desaparecimento da Jules Rimet nunca foram esclarecidos. Como fez
falta aquele intrépido investigadorzinho Pickles.
Nota
Apaixonado pela trama policial aqui narrada, Anélio Barreto imaginou para ela
um desfecho alternativo, no livro infantojuvenil "A História do Incrível
Roubo da Nossa Primeira Copa do Mundo". O título, à espera de edição, é a
segunda ficção de Barreto sobre o desaparecimento do troféu, tema de "O
Roubo da Taça" (Sulina, 1998, esgotado). Leia trecho do livro inédito em
folha.com/ilustrissima