10 de outubro de 2014 |
N° 17948
DAVID COIMBRA
A moça da República
Dominicana
Aula de gramática inglesa. Sábado
de manhã. Bem cedo. Meu cérebro não estava preparado para tamanha aventura
matinal em língua estrangeira. A professora, uma professora nova, da Boston
University, começou a falar de tempos verbais e a falar bem rápido e a escrever
naquele quadro. Eu entendia mais ou menos 44% do que ela falava. Olhei com
angústia para meus colegas. Não conhecia quase ninguém.
Eles pareciam despertos e alertas
como escoteiros, pareciam compreender tudo, estavam à vontade com o present
perfect progressive. De repente, riam, e eu ria junto, para não passar
vergonha. Esse é o truque, quando você perdeu o fio da meada da conversa numa
língua estranha e hostil: se eles rirem, ria também. Se não rirem, balance a
cabeça com a gravidade de quem está ponderando sobre a questão. Você parecerá
inteligente.
Bem na minha frente tinha um
relógio de parede desses redondos, de cozinha de mãe. Fiquei olhando para
aquele relógio, torcendo para que o tempo passasse logo. Não passava. Os
ponteiros não se mexiam. Eu estava preso numa janela da eternidade, dentro de
uma aula de gramática inglesa! Jesus! Deu-me uma angústia, uma vontade de sair
correndo.
Mas meu cérebro foi se
acostumando aos poucos, o mundo começou a clarear e aquelas palavras cheias de
ípsilons e dáblius foram se agrupando em frases coerentes. Aí a professora
decidiu pedir que os novos colegas se apresentassem e dissessem por que queriam
aperfeiçoar seu domínio do inglês. Eles foram breves. Falaram seus nomes, suas
profissões, deram algum pequeno dado curricular, nada que chamasse a atenção.
Até chegar a vez daquela moça da República Dominicana.
Ela era morena, usava o cabelo
puxado para trás e tinha um rosto expressivo de quem é cheia de opinião. Seu
inglês era um pouco claudicante, mas totalmente compreensível. Começou contando
sobre sua vida na República Dominicana. Falava num tom nostálgico, olhando nos
nossos olhos, como se estivesse revivendo os momentos que passou. Na República
Dominicana, “um lindo país”, ela morava com a avó, ela amava a avó. Repetiu
isso: amava a avó. Então, teve uma filha, a quem também amava muito. Mas não
conseguia sustentá-la, a vida estava difícil na República Dominicana.
Por isso, resolveu ir para os
Estados Unidos. Deixou a avó que (disse outra vez) tanto amava, e viajou com a
filha. Nos Estados Unidos, foi bem acolhida e conseguiu emprego de secretária
num consultório odontológico. Sorriu ao referir-se ao emprego, empertigou-se na
cadeira: aquele emprego, observou, era uma vitória. Ela era bem tratada e
ganhava um salário que garantia vida digna para ela e a menina. Mas... e nesse
momento seu rosto moreno se ensombreceu... mas faltava algo: ela não conseguia
relacionar-se com as pessoas como se relacionava na sua terra.
– Acho que é a língua – deduziu.
– Acho que não consigo dizer o que sinto. A verdade...
Nesse ponto, em meio às
reticências, fez uma pausa. Ficamos olhando para ela em silêncio, e em silêncio
ela ficou. Olhava para o vazio, com a boca entreaberta, com alguma frase
querendo lhe sair do peito. Estava quase falando... Esperamos alguns segundos.
Ela hesitou ainda mais um instante, e aí respirou fundo e abriu a boca. Olhou
para baixo, fitou as próprias mãos, agora juntas, e concluiu:
– A verdade é que me sinto muito,
muito sozinha.
Pensei em dizer algo. Acho que
todos ali pensamos. Mas ninguém disse, ninguém sabia o que dizer.