sábado, 15 de novembro de 2014


16 de novembro de 2014 | N° 17985
 L. F. VERISSIMO

Em Berlim

Atravessei o muro de Berlim duas vezes. Na primeira vez, éramos um grupo de escritores, e a travessia foi no famigerado “Checkpoint Charlie”. Onde homens mal-encarados entraram no ônibus e olharam fundo nos nossos olhos, tentando discernir quem de nós representava uma ameaça para o regime. “Escritores brasileiros”, disse eu, quando chegou minha vez de expor minha alma, “inofensivos”. Claro que não disse isso, mas pensei.

Enquanto nos examinavam dentro do ônibus, outros examinavam o ônibus por baixo, com espelhos. Ou procuravam bombas, ou – mais improvável – algum maluco tentando voltar para Berlim Oriental em vez de sair. Não havia nada letal embaixo do ônibus nem nas nossas almas. Passamos.

Fazia parte do nosso grupo o paranaense Domingos Pellegrini. E deu vontade no Pellegrini de fazer xixi. Já nos dirigíamos ao “Checkpoint Charlie” para sair de Berlim Oriental, onde tínhamos rodado na companhia de uma guia com um permanente ar de susto, mas o Pellegrini anunciou que seu xixi não podia esperar. Se o ônibus não parasse em algum lugar, ele faria xixi pela janela, o que poderia ser interpretado como um ataque terrorista.

Não podemos parar, insistiu a guia. Então, lá vai, disse Pellegrini, dirigindo-se para uma janela aberta. O ônibus parou. Pellegrini desceu e entrou num bar. O resto do grupo ficou esperando. E esperando. E esperando. Nada do mictante voltar. De repente, aparece ele na janela do bar, abraçado a um gordo alemão e erguendo um copo de cerveja. A guia teve que ir buscá-lo, não se sabe com que argumentos. No ônibus, o Pellegrini declarava: “Os sistemas não valem nada. O que vale é gente!”. A guia parecia disposta a castrá-lo.

Na segunda vez em que entrei em Berlim Oriental, foi na companhia de outro grupo de brasileiros, entre os quais o Ziraldo. Nossa guia, dessa vez, se chamava Annelaure. Vestia preto da cabeça aos pés e era triste.

Ela nos acompanhava desde Berlim Ocidental, onde nos levara em longas caminhadas por lugares lúgubres como ela, coitadinha. Tinha especial predileção por pátios sombrios de prédios abandonados, onde não seria surpresa se encontrássemos o Nosferatu em pessoa. Annelaure foi conosco para Berlim Oriental, de trem. Na estação, passava-se por um corredor e um guichê onde as pessoas mostravam seus documentos e algumas eram revistadas. Passamos todos pelo corredor e o guichê – menos a Annelaure.


O que teria havido com a nossa depressiva mas querida guia? O Ziraldo dipôs-se a ir buscá-la. Tentamos dissuadi-lo. Era loucura. Ele podia acabar preso. Mas o Ziraldo foi. E dali a poucos minutos voltou com a Annelaure, sob palmas. Os guardas da fronteira tinham implicado com um jornalzinho que a nossa guia trazia no bolso do sobretudo. Até hoje não se sabe como o Ziraldo convenceu os guardas a deixá-la passar. Mas ficamos sabendo que aquilo – alguém voltar ao guichê para resgatar alguém – nunca tinha acontecido antes. Há quem diga que o feito foi o começo do fim do Muro de Berlim. E que começou com o