18
de novembro de 2014 | N° 17987
FABRÍCIO
CARPINEJAR
Meus olhos sujos
Ela
sempre reclamou que eu não sabia tirar as remelas quando despertava. Eu era
capaz de passar o dia, mesmo tomando banho, mesmo lavando o rosto, com os
ciscos nos cantos.
Quarenta
e dois anos e os olhos sujos do sono, os olhos imundos do sonho. Não entendia
como eu não tinha paciência para esfregar os dedos nas pontas e remover o que não
dependia de esforço.
Permanecia
com o rosto desobediente, aparvalhado, de menino acordando às pressas para a
escola. Será que ninguém me ensinou? Será que não consegui aprender?
Não
raspava os pratos na mesa, assim como não raspava o fundo dos olhos. Este era
eu. Quando nos separamos, eu me arrependi do que não insisti em ouvir para
entender. Foi quando escutei o seu choro na sala.
O
choro derrotado de quem tentou salvar de tudo que é jeito a relação, e nada
mais mudaria minhas certezas. Ela não chorava como uma mulher, não chorava como
uma adulta, não chorava como já tinha visto, apesar de fazê-la infeliz várias
outras vezes.
Ela
chorava como uma criança, um timbre infantil agonizando no fundo de sua voz
madura. Era o choro que chorava, não alguém chorando. Como se houvesse uma
criança trancada no quarto das lágrimas, pedindo para sair, esmurrando a porta
das faces.
Ela
se dobrou numa almofada, as costas contraídas, envolvida no espaçar mínimo de
grito e resmungo, característico de uma menina. Uma menina de luto. Uma menina
cansada do luto.
Ela
não uivava como um animal encurralado, não gemia como uma desiludida, não
chorava cantando como a angústia pede, não forçava a passagem da correnteza com
o soluço, não exagerava na cena.
Natural,
espontânea, desafinada, com sua pureza renascendo do sofrimento.
Ela
era uma menina desesperada, uma menina repentinamente órfã, uma menina correndo
mais rápido do que o pranto. Seu tom plangente doía em meus ouvidos,
perturbava, como arranhões no vidro com as unhas.
Num
sacrifício desmedido, ela me oferecia sua infância. A vulnerabilidade total de
seu corpo, a grandeza de sua pequeneza. Entregava seu medo de dormir no escuro,
de ficar sozinha de novo, de não ser aceita. A injustiça do mundo que uma criança,
desde cedo, pressente com toda a sinceridade.
Não
me contive, e chorei junto. Foi seu gesto de adeus. Ela retrocedeu no tempo de
sua dor para se tornar uma menina e amar o menino que fui. As lágrimas levaram
minhas remelas.
Enfim,
poderia ser adulto. Meus olhos hoje estão limpos e, em compensação, muito mais
amargos.