16
de novembro de 2014 | N° 17985
CÓDIGO
DAVID | David Coimbra
O velhinho
Engordei
seis quilos desde que cheguei aos EUA. American way of life, sabe como é... Mas não sou de donuts
polvilhados de açúcar, nem de hambúrgueres com maionese transbordante, nem de
bacon frito. Tenho a impressão de que a grande responsável pelo meu engorde é
uma sorveteria que fica perto da escola do meu filho. Lá são servidos sorvetes
cremosos e caseiros, uma delícia. E lá tem umas poltronas macias para a gente
ficar olhando a vida passar e, enquanto isso, rola um suave rock nacional. Como
resistir?
Então,
estava indo todos os dias a essa sorveteria, um atentado calórico. Foi lá que
vi pela primeira vez uma figura folclórica aqui do bairro. É um velhinho bem
velhinho, deve ter, sei lá, 90 anos ou mais. Ele se desloca pela cidade da
mesma forma que o fazem todas as pessoas em idade provecta por aqui: em uma
cadeira de rodas motorizada que parece tão boa de andar que tenho vontade de
comprar uma para mim.
É
algo curioso, pelo menos para um brasileiro tosco feito eu, desacostumado a ver
pessoas idosas se movimentando com independência pelas ruas. Pois é isso mesmo
que a cadeirinha dá aos velhos e deficientes: independência. Ela tem rodas de
borracha e ganha razoável velocidade, como se fosse uma pessoa correndo. É
manejada por uma espécie de manche, com uma mão só.
E,
para permitir escorreita circulação às cadeirinhas, a prefeitura cuida com
critério das calçadas. São feitas de grandes placas de concreto, lisas, com
rampas em todas as esquinas. Quando a prefeitura vai reformar uma calçada,
ainda que a obra dure só um ou dois dias, é construída uma rampa auxiliar,
também de concreto, para permitir que os velhinhos e os deficientes possam ir a
qualquer lugar sem contingências. À frente da obra é postado um policial, que
fica atento para que os carros não atrapalhem a circulação dos pedestres, dos
corredores (que são muitos) e das cadeiras.
Esse
velhinho a quem me refiro demonstra exemplar habilidade na condução da sua
cadeira. Anda em zigue-zague pelas calçadas em alta velocidade, os outros que
se cuidem com ele. Está sempre zanzando por aí. O dia em que o vi pela primeira
vez foi uma dessas tardes outonais da Nova Inglaterra, sol ameno, 12°C . Depois de buscar meu filho na
escola, fomos nos repoltrear com densos sorvetes de baunilha e de café que
explodiam em cerca de 2 mil calorias, cruz-credo. Já havíamos nos instalado nas
poltronas quando o velhinho surgiu na calçada, pilotando sua cadeira. Tomou a
maçaneta na mão e deu ré, abrindo a porta. Nisso, uma moça ia saindo e segurou
a porta para ele. Que rosnou:
–
Não precisa segurar para mim! Pode sair, que me viro sozinho.
Ela
hesitou, e ele:
–
Sai, sai!
Ela
se foi, constrangida. Ele entrou, bufando.
Notei
que, em volta da cadeira, penduradas em vários ganchos ou acomodadas em
compartimentos, havia sete pequenas malas e pastas. Sete! A vida dele inteira
deveria estar lá dentro.
Ele
rodou pelo corredor da sorveteria. Uma senhora tinha puxado uma cadeira para
fora da mesa, obstruindo-lhe a passagem. Ele reclamou:
–
Quer tirar essa cadeira daí?
A
senhora tirou, mais do que depressa, e pediu desculpas. O velhinho não
respondeu. Deslizou até o balcão. Parou na frente da atendente. Jogou o braço
para trás e, de algum desvão da cadeira, sacou um enorme copo de metal.
–
Café quente e forte até o topo! – ordenou.
A
atendente pegou o copo e obedeceu. Devolveu-o ao velhinho. Que latiu outra vez:
–
Bolo de abóbora! Um pedaço grande!
A
menina logo surgiu com uma fatia de bolo de abóbora num pires. O velhinho
analisou-a e respirou fundo:
– É
pequena!
Ela
foi para trás do balcão e voltou com uma fatia três vezes mais larga. Ele tomou
o pires, acomodou-o sobre um suporte e rodou até uma mesa. Alguém estava
prestes a sentar-se, mas ele rugiu novamente:
– É
minha!
O
rapaz que ia se acomodar desistiu, pediu desculpas e foi procurar outro lugar
menos inóspito.
Fiquei
observando-o enquanto ele se ocupava em destruir o bolo com os dentes, que,
suponho, eram postiços. Voava farelo para todo lado e ele sugava aquele café
com alarde. Uma cena dantesca.
Olhei
para a atendente, que, do lado de lá do balcão, também admirava a apresentação
do velhinho. Nossos olhares se cruzaram. Ela sorriu, condescendente. Sorri de
volta. Levantei-me para sair com meu filho e, no mesmo momento, o velhinho
engatou a primeira lá naquela cadeira dele, pronto para também ganhar a rua.
Estremeci. Decidi deixá-lo sair antes de nós. Fiquei de pé, segurando meu filho
pela mão, esperando. Ele passou por mim, pegou a alça da porta e, antes de
empurrá-la para fora, me encarou.
–
Qual é o problema? – perguntou, acrescentando algo asperamente que não entendi,
mas que devia ser algum adjetivo pouco elogioso na língua de Shakespeare.
Abri
a boca, sem saber bem o que dizer. Não precisei falar. Ele não esperou pela
resposta. Foi-se embora velozmente na sua cadeira, reclamando da vida.
São,
de fato, independentes até demais esses velhinhos sobre rodas da América do
Norte.