sábado, 29 de novembro de 2014


29 de novembro de 2014 | N° 17998
PALAVRA DE MÉDICO | J.J. CAMARGO

FAZER POR FAZER? MELHOR NÃO

Os ingênuos podem supor que a alegria que sentimos ao fazer o que fazemos depende da importância que os outros dão ao que é feito. Felizmente, não é assim, porque senão, aos que fazem as tarefas chamadas menores, só restaria a frustrante sensação da insignificância. E com ela, o sentimento de inferioridade.

Como o percentual de façanhas extraordinárias é muitíssimo pequeno, parece lógico concluir que a fonte geradora de alegria pessoal depende mesmo é da qualidade do que fazemos, seja lá o que façamos.

Quando se trabalha em equipe, um conceito básico é que as tarefas de execução mais simples, aquelas que dispensam grande qualificação técnica e para as quais se consegue habilitação mais rápida, essas nunca poderão ser rotuladas como secundárias, sob pena de ruir todo o sistema. O exemplo que considero perfeito desta situação é o da faxineira do bloco cirúrgico. Quem definiria sua atividade como secundária, se uma infecção, decorrente de má assepsia, pode empurrar todo o brilhantismo técnico da cirurgia para o ralo da complicação, às vezes, irreparável?

Aprendi, em funções de chefia, que a construção de um grupo diferenciado principia com a valorização da parcela de cada um, não apenas porque o reconhecimento profissional é um ingrediente indispensável na construção da autoestima individual, mas, principalmente, porque dele depende a espontaneidade do comprometimento.

Os simplificadores atribuem aos baixos salários todo o problema do desempenho medíocre, mas é um equívoco ignorar que não há estímulo econômico que coloque encanto no que se faça sem prazer. O mau humor de alguns profissionais bem remunerados e a tocante entrega afetiva de operários que mal ganham para a sobrevivência são a prova de que nos alimentamos também de uma energia maior que nos impulsiona e gratifica. E que, sem ela, nos transformamos em colecionadores de ressentimentos.

Era um enterro de uma pessoa querida e fiquei impressionado com o entusiasmo com que o coveiro rebocava os tijolos para o fechamento do sepulcro. Havia uma irretocável precisão de gestos quando cortava os fragmentos dos tijolos para que coubessem no espaço entre as peças maiores e, por fim, a colocação da pasta de cimento que preenchia todos os vãos, com notável destreza. Cheguei mais perto para ler o nome no crachá e percebi que o Valdemar adorava o que fazia e só não assobiava de contentamento em respeito à família que voltara a soluçar à medida que a colocação da lápide representava a materialização do adeus.

Quando começou a debandada, senti a necessidade de agradecer ao Valdemar. Naquele “de nada!” meio sussurrado havia uma dose de surpresa e incompreensão, mas apesar da vontade de abraçá-lo, não senti ânimo para explicar que vê-lo trabalhar com tanto gosto tinha sido a única coisa memorável de um dia muito triste. Sem ter ideia de qual seja o salário de um coveiro, preferi arquivar aquele desempenho como modelo de adaptação a uma tarefa difícil e até imaginei-o festejando em segredo: “Vocês podem não entender, mas eu duvido que alguém lacre uma sepultura como eu!”.


A propósito disso, lembrei-me de uma passagem extraordinária, que descreve um diálogo que presumivelmente ocorreu entre Madre Tereza, que cuidava de leprosos, e um empresário texano. O milionário, vendo-a banhar carinhosamente um daqueles pobres pacientes, disse: “Irmã, eu não faria este trabalho nem por um milhão de dólares”. E ela respondeu: “Eu também não, meu filho”.