18
de novembro de 2014 | N° 17987
LUÍS
AUGUSTO FISCHER
PARA O MUNDO
Mais
de uma vez Iberê Camargo contou que tinha em sua memória uma frase estranha,
sedutora, enigmática. Ouviu-a, parece, de um anônimo em Restinga Seca, onde
nasceu: “No céu não luzem estrelas pretas”.
Por
um lado é óbvio que não podem luzir no céu estrelas pretas, porque o brilho é
fenômeno da luz clara, e o preto recusa a luz. Por outro lado a frase tem ar de
sentença moral, de metáfora geral da vida, que a eleva bem acima do óbvio.
(Nelson
Rodrigues manteve na memória a frase sábia e cética de um jardineiro que ouviu,
menino: “O sábado é uma ilusão”. Estragando a linda obscuridade da frase, eu
diria que é óbvio também: um trabalhador braçal amargo faz sentido que
considere o sábado como um engodo, porque a vida real volta na segunda com toda
a força.)
Iberê
Camargo tem a força desses enigmas. Sua obra se construiu ao modo de outras
grandes realizações artísticas de sua geração – com técnica, força de vontade,
obsessão, briga, incompreensão, intuição, algum aplauso, além de uma
indisfarçada vontade de agredir, que a arte sabe transmutar em outra coisa,
enquanto mantém latente a fúria. E quis o bom destino que seu caminho fosse
coroado com um museu, que leva seu nome e junto leva o nome de Porto Alegre
para toda parte.
O
projeto de Álvaro Siza dá gosto e orgulho. A cidade como que cedeu uma de suas
curvas mais profundamente lindas, ali quase na volta do Só, beira do Cristal,
para acolher um prédio que é ao mesmo tempo funcional, lindo e incômodo –
comparado com congêneres europeus, o museu de Iberê tem o tamanho certo para o
acervo e as exposições que ali se abrigam, sem forçar um faraonismo que seria
caipira, assim como tem um jeito agradável de ser, sinuoso, amigo do visitante,
mas apresenta igualmente um traço provocativo, um ar de desequilibrado, que a
obra de Iberê também tinha, tem.
No
centenário de nascimento do grande pintor e gravador, Porto Alegre tem,
afortunadamente, mais do que sua excelente obra para comemorar.