30
de novembro de 2014 | N° 17999
FABRÍCIO
CARPINEJAR
Menino da verdade
Tenho
uma multidão de Pinóquios. Coleciono o boneco de madeira. É meu presente
predileto. Os amigos já viajam com a encomenda em vista. Nunca é demais, arrumo
espaço no teto, nas paredes, nas prateleiras. Jamais me decepciono. Sempre
vibro quando recebo mais um modelo, ainda mais se é títere, com os fios embaralhados,
para me sentir esperto em tirar o nó.
Na
infância, eu apenas ganhava bolas de futebol. E tampouco me cansava. Cheguei ao
cúmulo de contar com dez bolas no quarto – impossível era andar no escuro.
Adepto
dos presentes monotemáticos, gosto de algo até me fartar. Eu transformo predileção
em obsessão; preferência em mania.
Pelo
menos ninguém precisa se preocupar em me adivinhar. Facilito o trabalho no
Natal. Ainda faço cara de surpresa sendo um presente igual ao outro.
O
que não considero justo é deduzir que sou mentiroso porque adoro Pinóquio. Ele
não poderia ser sinônimo da trapaça e do engano. Faz travessias inimagináveis
para honrar suas promessas e guardar o que é justo.
Pinóquio
é o contrário da sua fama: é o esforço que todos passamos para alcançar a
verdade. É a insistência da verdade. É a teimosia da verdade. O caminho não é linear.
Não nascemos, somos fabricados. Nascer só acontece depois de amar. Temos que
nos perder para valorizar o que encontramos.
Pinóquio
é tradução de sofrimento infantil. É um exemplo de honestidade – ele erra para
aprender, assimila a si mesmo –, o doce e o amargo – tropeçando com a mais pura
das intenções.
É a
demonstração da lealdade ao seu pai Geppetto e ao seu começo.
Pois
crescer não é amadurecer. Tem gente que cresce e jamais amadurece. Pinóquio
amadurece dentro do sofrimento.
Pinóquio
sou eu.
Quando
peço o Pinóquio de presente, estou dizendo que não tive infância, busco
restaurar uma tranquilidade que não conheci nos anos de alfabetização.
Quando
peço o Pinóquio de presente, estou dizendo que confiava em grilos e amigos
imaginários, que sempre acreditei no invisível para dividir minhas aflições.
Quando
peço Pinóquio de presente, estou dizendo que sofri gozação dos colegas, que me
chamaram de burro e asno, que troçaram da minha aparência, que me maltrataram
com frequência, a ponto de me colocar de cabeça para baixo na janela da escola,
que mesmo assim resisti e fui buscar meu coração no interior do oceano e da
baleia.
Quando
peço o Pinóquio de presente, estou dizendo que não me escondi na fantasia, por
mais que a realidade não me favorecesse, que aceitei quem sou, de madeira, frágil
e imperfeito.
Quando
peço o Pinóquio de presente, estou dizendo que não desisti de ter esperança, não
me escondi na depressão, não parei de caminhar. Avancei sem entender. Fui
adiante aguardando a solução do meu mistério.
Não
sei quantos Pinóquios necessito receber para acalmar o choro da criança que fui.
Mas um dia, se Deus quiser, eu me torno um menino da verdade.