sexta-feira, 28 de novembro de 2014


28 de novembro de 2014 | N° 17997
MOISÉS MENDES

Os ônibus da cidade arcaica

Uma cidade em que a classe média e os ricos não andam de ônibus é uma cidade arcaica. São as cidades brasileiras.

A definição é de um humanizador de espaços urbanos, o ex-prefeito de Bogotá Enrique Peñalosa. Também é Peñalosa quem diz que, quanto mais se estreitam as calçadas de uma cidade, mais ela se degrada e retrocede.

E tem esta outra, também dele: uma cidade nunca será civilizada enquanto os carros andarem mais rápido do que os ônibus.

Ao enfrentar o cartel dos ônibus, o prefeito Fortunati pode começar a nos levar para a cidade civilizada do colombiano. Há quase um século, as empresas desfrutam de uma capitania hereditária na Capital. Sem licitações, sem concorrência, sem nenhuma ameaça que as desafie a oferecer um serviço de qualidade.

Andar de ônibus em Porto Alegre é uma tortura. Sei porque tentei. Decidi andar quando conversei com Lutzenberger. Kadão Chaves fotograva um gato espichado aos pés do ecologista, no Rincão Gaia, quando ele me desafiou.

Me disse: saibas que, quando andas sozinho no teu carro, teu corpo é carregado por um monte de ferro que tem mais de 10 vezes o teu peso.

A partir dali, por uns quatro meses, andei de ônibus em ida e volta diária de 28 quilômetros, de segunda a sexta. A vinda da Zona Sul até o jornal era fácil. O difícil era entrar no ônibus no retorno, depois das 20h.

Me lembro quando vi uma mulher pôr o dedo na cara de um homem: se tu me tocar de novo, eu te dou um tapa. O aperto facilita a ação dos tarados.

Até que uma noite remexi na carteira e nos bolsos e não achei dinheiro. Falei baixinho com o cobrador. O cobrador gritou que quem manda no ônibus é o motorista. Todo mundo ouviu.

Encarei o motorista, depois de pensar um pouco, duas paradas adiante de onde deveria descer. O motorista apontou a porta com o nariz. Quando estava no degrau, ouvi o homem exclamar: mas que cara de pau.

Cheguei em casa e fiz as contas. Não ganhava nada andando de ônibus. Sozinho dentro do carro eu gastava de gasolina, na ida e na volta, menos do que com as passagens. Para não ser egoísta e tentar ajudar a construir a cidade civilizada, eu legitimava um serviço caro e ruim.

Desisti. Dias depois, esperei por mais de hora na parada da João Pessoa, até que apareceu o meu ônibus. Me aprumei para dar uma demonstração de honestidade. Imaginei, como ilusão, que estavam no ônibus os mesmos que, na véspera, me viram como caloteiro.

Paguei na roleta e, ao descer, disse ao motorista: está quitada a passagem de ontem. O homem me olhou e respondeu sem entusiasmo: deve ser engano, não sei de nada.

Era outro motorista. Desci frustrado, porque havia acertado as contas com o homem errado.

Agora, só ando de ônibus na precisão. Vejo, quando volto para casa à noite, ônibus abarrotados, com gente dormindo em pé, e penso na cidade civilizada de Peñalosa.

O cartel que se protege na conversa de que faz parte da livre-iniciativa deve levar um choque de capitalismo e concorrência. Se não aguentar, que dê um passinho à frente e salte fora.

Contei essa história ao jornalista Carlos Bastos, diretor de Comunicação da prefeitura. Bastinhos me disse que o prefeito vai enfrentar o cartel. Se vencer e a cidade ganhar um transporte público de qualidade, volto a andar de ônibus.


As concessionárias estão em dívida com a cidade, e não é coisa de poucas moedas.