quarta-feira, 3 de dezembro de 2014


03 de dezembro de 2014 | N° 18002
J.A. PINHEIRO MACHADO

A gravata torta do vagabundo celeste

A gravata e a roupa, sempre, em todos os tempos, ocultaram a desfac¸atez - mas tambe´m sublinharam virtudes. Anonymus, que usa gravata borboleta, gosta de lembrar a censura de Fradique Mendes, o mais encantador dos personagens de Ec¸a de Queiroz, numa carta reclamando do seu alfaiate por lhe ter cortado um casaco que assentava ta~o bem “nas costas de uma cadeira de pau, como nas costas do Comandante da Guarda Municipal, ou de um filo´sofo, se houvesse algum nestes reinos”.

O que queria Fradique Mendes: “Eu desejava que esse casaco me mostrasse a Lisboa como sou: reservado, frio, ce´tico e inacessi´vel aos pedidos de meias-libras”.

A roupa esta´ para o homem como a palavra para a ideia, exaltava-se Fradique, querendo algo que ressaltasse suas qualidades e disfarc¸asse seus defeitos:

“Os alfaiates ingleses ajeitam certas roupas que emanam virtude por todas as costuras, justamente para esconder a velhacaria de quem as veste!”.

Vamos combinar que não há mal algum em ter simpatia pela futilidade das aparências. Contardo Calligaris lembra que, desde o fim do século 18, os dândis (que fizeram da elegância um culto) tiveram uma função decisiva na revolução social moderna: “Se o critério da elegância substituísse o da nobreza de berço, qualquer um poderia ser elite; bastaria que fosse elegante”. Um exemplo seria Disraeli (que era um dândi). Tornou-se primeiro-ministro da rainha Vitória porque sua elegância contou mais que sua origem humilde (que, em princípio, impediria que ele tivesse acesso a tamanho cargo).

Para os dândis, no entanto, a elegância era “uma fineza rica”, com implicações morais, como observou Calligaris. O cuidado frívolo com as aparências – do nó da gravata ao corte das calças – seria também uma revolta do bom gosto contra as feiuras do capitalismo incipiente.

Dos meus tempos de repórter em Paris, lembro de Monsieur Lanvin, um dos homens mais elegantes do se´culo 20, modelo de discric¸a~o e sobriedade, que nunca se confundiu com velhacos engravatados. Numa rara entrevista, respondeu sobre como se vestia:

“De gravata, sempre. Exceto na praia”.

As gravatas podem ser de seda ou de polie´ster, escuras ou escandalosas, caras ou baratas, com no´ Duque de Windsor ou borboletas. Seguidamente, pendem do pescoc¸o de gente digna e nobre. Lobo Antunes recorda algue´m assim, o homem que iluminou sua vida, de gravata torta e casaco amassado:


“Charlie Parker... Esse pobre, sublime, misera´vel, genial drogado que passou a vida a matar-se e morreu de juventude, como outros de velhice. Cresci com um enorme retrato dele no quarto. Usa uma gravata torta e um casaco amassado, e poucas pessoas estiveram ta~o perto de Deus quanto esse vagabundo celeste”.