sábado, 10 de janeiro de 2015


11 de janeiro de 2015 | N° 18039
PAULO FAGUNDES VISENTINI

A história como comédia: a Sony e a Coreia do Norte

A política internacional geralmente é enfadonha ou trágica, mas também pode ser divertida. Um importante filósofo europeu disse que a história se repete, uma vez como tragédia e outra como farsa ou comédia. Em dezembro de 2014, um episódio envolvendo uma comédia juvenil caricata sobre o líder norte-coreano Kim Jong-un, o estúdio Sony e a Coreia do Norte, resgatou a famosa frase.

Até então mostrado como um Estado atrasadíssimo e à beira do colapso, essa nação foi acusada por autoridades americanas, sem qualquer prova ou mesmo indício, de estar por trás do sofisticado ataque cibernético de hackers, o qual teria revelado na internet informações sigilosas da Sony. E, pior, de ter ameaçado realizar atentados a salas de cinema que exibissem a película.

A “Guerra Fria”, encerrada na semana anterior com o reatamento diplomático EUA-Cuba, reviveu com intensidade. Por coincidência, quando Obama era atacado por sua leniência com o socialismo cubano, pode retomar o velho discurso da Guerra Fria contra a Coreia do Norte, e o acordo com Cuba fica esquecido. Espalhou-se, inclusive, o boato de que o “terrorismo”, que passou a incluir os coreanos, teria selado um pacto com os hackers para promover novas maldades. Mas foi, então, a Coreia do Norte a vitima de um ataque cibernético que tirou seus sites do ar.

Todavia, o presidente da Sony, “corajosamente”, voltou atrás e projetou o filme, sem se intimidar. O público correu a assistir e a companhia lucrou milhões com o incidente. Membros do Conselho de Segurança da ONU aproveitaram a ocasião para propor o indiciamento de Kim Jong-un por “crimes contra a humanidade”, embora ele esteja no poder há apenas três anos e o regime seja hoje muito mais tolerante do que no passado. É uma perigosa banalização do conceito, que pode esvaziá-lo.

A família Kim, apesar do discurso antiamericano recorrente e legitimador, tem um gosto curioso. O jovem líder, que cursou o colégio na Suíça, é um tipo comunicativo e informal. Nada a ver com o personagem do filme, ao qual provavelmente assistirá. Seu pai, segundo a ex-Secretária de Estado Madeleine Albright, era apaixonado por cinema e possuía a maior coleção hollywoodiana que ela já vira. Seu irmão mais velho, com a família, foi barrado em Tóquio em 2001 com passaportes falsos, quando viajava para a Disneylândia.

Conforme os interesses do momento, a Coreia do Norte pode ser atrasada ou letal, a ponto das pessoas se tornarem incapazes de diferenciar ficção e realidade. Seu regime é inaceitável nesta metade do mundo, mas o caso é um exagero. As ameaças, reais ou forjadas, representam uma indispensável ferramenta da política e da psique humana. Todavia, não se deve abusar, mesmo que o ridículo e a comedia não tenham limites.


PAULO FAGUNDES VISENTINI É HISTORIADOR, PROFESSOR TITULAR DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS DA UFRGS. ESCREVE MENSALMENTE