14
de janeiro de 2015 | N° 18042
MOISÉS MENDES
O Vale de Michel
Michel
Boabaid foi, na minha adolescência no Alegrete, a figura definitiva do que
seria um comerciante árabe. O libanês tinha uma lojinha na Barão do Amazonas,
perto da praça, e concorria com os palestinos da Andradas no marketing da
abordagem a quem passava.
–
Entrrra, frrregueeesa – dizia Michel, sentado numa cadeira na calçada.
E as
freguesas compravam chitão, lençóis, guardanapos. A loja era apertada, com
prateleiras dos dois lados e um balcão ao fundo.
Ontem,
almocei no Mercado Público com meus amigos do Alegrete José Roberto Ramos e
Élvio Vargas, falamos de Paris, porque agora só se fala de Paris, e nos
lembramos de Michel.
Um
dia, quando voltei a Alegrete, passei na loja de Michel, que não tinha nome, e
ele estava sentado ali na frente. Olhei para dentro e vi prateleiras vazias,
com meia dúzia de bobinas de panos coloridos. Era como se ele estivesse se
desfazendo dos últimos chitões para poder dizer: pronto, vendi tudo o que
tinha.
Michel
morreu em 2002, aos 90 anos. Fiquei sabendo mais de Michel porque, depois do
almoço, telefonei para o jornalista Alair Almeida, também do Alegrete, que
ainda está por lá. Alair me falou dos Boabaid e me disse: liga para o Luiz
Felipe, que ele te fala mais do Michel.
E de
repente eu queria saber mais de Michel. Liguei para Luiz Felipe, que herdou do
pai, Jorge Boabaid, a Casa Paulista, a última loja libanesa do Alegrete, que
vende tecidos desde 1927.
E o
Luiz Felipe me disse que Michel Boabaid era irmão de seu pai. Os irmãos Jorge,
Felipe e Michel vieram adolescentes da cidade de Zahle, no Vale do Bekaa.
Michel
tinha uns 19 anos. Veio analfabeto e continuou analfabeto. Falava mal o
português, mas sabia fazer contas. Nunca o encontrei na rua, no cinema, na
praça ou em outro lugar que não fosse a frente da loja.
Solteirão,
viveu da lojinha até o último chitão. O Zeca, o Élvio, o Paulo Renato Rodrigues
e o Alair nunca entraram na loja de Michel porque homem não comprava tecido.
Naqueles tempos, lá pelos anos 70, o máximo da discriminação contra um árabe,
na ingenuidade da adolescência interiorana, era identificá-lo genericamente como
turco.
Eu
nunca falei com Michel, e o que lembro bem é de seu olhar espichado de solidão
e melancolia. Agora, quero saber mais sobre o Vale do Bekaa.