16 de junho de 2015 | N° 18195
CARPINEJAR
Florescer os botões
Não quero herdar da casa materna os 8 mil livros da
biblioteca.
Não quero os quadros de artistas famosos.
Não quero os móveis antigos ou mesmo a cadeira de balanço
onde fui amamentado.
Não me interessa nenhum bem de um futuro inventário.
Não desejo nada dali de dentro, a não ser a caixinha de
botões. A caixinha de botões que está na primeira gaveta da cristaleira da
sala.
E não passarei mais frio na memória.
O desinteressante pote rosa, entornado até a borda, que nem
fecha direito a sua tampa de enroscar, lascada do lado direito.
É um museu das sobras da família. É um achados e perdidos de
nossos trajes. Tem botões extraviados ou reservas de três décadas, de camisetas
e casacos do meu pai, dos meus avós, dos meus irmãos.
Camadas e camadas geológicas de esquecimento doméstico,
recuperadas do chão por uma atenta sentinela do guarda-roupa. Uma montanha de
tipos e modelos, desde os embutidos aos duplos, dos foscos aos perolados, de
todas as cores e formas.
Era o estojo de primeiros socorros antes de um encontro
importante, em que notávamos que não tinha como fechar a camisa.
Lá vinha a mãe acalmar o nosso desespero. Sempre achava o
botão certo, o botão ideal, o botão igual. Impressionava-me a quantidade
inesgotável de gêmeos guardados naquele berço miúdo.
Havia uma alegria quando ela colocava o fio preto ou branco
na cabeça da agulha e nos prendia de novo às certezas da rotina. Ela recuperava
a ordem natural do nosso crescimento, como se devolvesse o pássaro ao ramo, o
peixe ao rio, a estrela ao céu.
Dedicava tardes esparramando seu conteúdo na mesa, buscando
adivinhar a origem de cada uma das peças, realizando combinações, brincando de
estilista de brechó, remontando o meu passado de menino.
Mas confesso que também havia uma tristeza no quebra-cabeça
dos pequenos objetos, uma melancolia, botões de flores que ficariam fechadas e
jamais desabrochariam com o toque das unhas.
Significava ainda restos das pessoas, rastros de beijos e
amizades, aguardando uma adoção desesperada, uma nova encarnação.
Ia além. Imaginava os botões como testemunhas dos principais
acontecimentos de uma vida. Serviram para o desabotoar os seios da primeira
noite de uma mulher ou para fechar a blusa durante a despedida de uma paixão.
Os botões são as âncoras de nossas mãos.
Os botões são as moedas das roupas, o troco de nossas
ambições.
O botão é o sino do pano.
O botão é o brinco da veste, o brilho do detalhe.
O botão é um estetoscópio natural. Sem ele, o tecido não
escuta a pele.
O botão é a maior das insignificâncias.
Você somente lembra que precisa dele quando perdeu. Assim
como o amor de mãe.